Conversando com Mercedes Petit

Zezé, Maria José Lourenço da Silva, faleceu no dia 24 de março de 2025, perto de completar 80 anos. O ato unitário em homenagem à Zezé, realizado na sede da CSP – CONLUTAS em SP, reuniu militantes históricos, que compartilharam a militância na época do Ponto de Partida, da Liga Operária e da Convergência Socialista. E, no plano internacional, da FLT, da Fração Bolchevique e da velha LIT-QI dos anos 1980 (ver Ato unitário celebra a trajetória de Zezé! – CST-UIT)

A dirigente da Izquierda Socialista [Esquerda Socialista] e da UIT-QI, Mercedes Petit, foi uma das oradoras internacionais (ver www.instagram.com/cst_uit/reel/DJz6sAaST4Y/). A companheira é veterana do movimento trotskista, sempre atuando na corrente fundada por Nahuel Moreno.

Aproveitamos a ocasião para conversar com ela. Assim, as jovens e os jovens, que não militaram naquele momento, poderão saber mais daquela rica experiência e conhecer mais nossa tradição partidária, além de dialogar sobre a vigência das elaborações da corrente morenista e sobre o que é ser trotskista hoje. Vejamos o que Mercedes Petit vai nos contar a seguir.

Boa leitura!

Combate Socialista: Como você conheceu a Zezé?

Mercedes Petit: Foi há mais de meio século! Ela havia se exilado no Chile, sob o governo de Salvador Allende e da Unidade Popular, devido à repressão da ditadura militar brasileira. Com outros companheiros, formou um pequeno grupo chamado Ponto de Partida, que aderiu ao trotskismo e entrou em contato com a corrente de Nahuel Moreno. É fácil lembrar quando nos conhecemos, porque Zezé veio para Buenos Aires após o triunfo do golpe genocida de Pinochet, em 1973. Naquela época, tínhamos uma sede na Rua 24 de Noviembre. Lá nos reuníamos com Nahuel Moreno, tanto dirigentes do PST quanto da nossa corrente internacional. Zezé e eu tínhamos mais ou menos a mesma idade. Depois, ela retornou ao Brasil por um tempo, pois decidiram fundar a Liga Operária em São Paulo, em 1974. Em março de 1976, ocorreu o golpe na Argentina, e em junho e julho daquele ano, começamos a nos exilar em Bogotá, Colômbia, com Moreno e outros companheiros. Zezé ingressou [na direção internacional] em 1977 ou 1978, não me lembro exatamente, integrando-se às tarefas de direção da corrente morenista internacional. Foram anos de um belíssimo ativismo compartilhado. E, naquele período, Zezé conheceu o homem que se tornaria seu companheiro de toda a vida, Jorgito Sprovieri, militante do PST, que havia sido preso e pôde se exilar e se estabelecer em Bogotá.

CS:  Na intervenção, falas rapidamente de atividades com a Zezé no exílio na Colômbia. Poderias contar mais sobre essa época da corrente trotskista morenista?

MP:: Naquela época, havíamos formado a Tendência Bolchevique, em 1976, e, em seguida, a Fração Bolchevique (FB), em 1978. Lutávamos dentro da Quarta Internacional (Secretariado Unificado) contra o setor majoritário oportunista, formado pelo mandelismo e pelo SWP dos Estados Unidos. As diferenças e polêmicas estavam se acirrando. Houve uma cisão em julho-agosto de 1979, às vésperas do Décimo Congresso Mundial. Na Nicarágua, a mobilização contra a ditadura de Somoza, liderada pelo exército guerrilheiro da Frente Sandinista de Libertação Nacional, crescia. A partir de Bogotá, com o apoio do PST colombiano e de toda a FB, Moreno impulsionou a nossa participação na luta armada com a Brigada Simón Bolívar (BSB), que participou ao lado da FSLN do combate na frente sul, a partir da fronteira com a Costa Rica. Uma operação independente também foi realizada na cidade de Bluefields, na costa atlântica, que foi libertada por um contingente da BSB [1].

Em 19 de julho, Somoza fugiu e a ditadura caiu. A FSLN formou um governo com dois representantes da burguesia anti-Somoza, Violeta Chamorro e Alfonso Robelo. O mandelismo e o SWP (que não haviam participado, de forma alguma, da longa luta anti-ditadura) apoiaram o governo burguês. Por sua vez, em 26 de julho, o próprio Fidel Castro aconselhou a direção sandinista a manter a aliança com a burguesia, sem aprofundar a revolução e sem expropriar a burguesia, promovendo a reconstrução da economia e das forças armadas capitalistas. Em agosto, o governo sandinista prendeu os brigadistas e os expulsou para o Panamá. Houve uma cisão, porque o setor mandelista e o SWP apoiaram a repressão aos combatentes da brigada. Foi um salto em relação às divergências e controvérsias em curso entre os trotskistas, pois questões de princípio foram violadas, com a defesa da repressão de um governo burguês, algo que nos levou a romper com a Quarta Internacional – Secretariado Unificado. Isso abriu um processo de aproximação com o lambertismo, importante corrente do trotskismo francês, e com organizações de outros países. Zezé e eu viajamos a Paris, para participar de reuniões em dezembro de 1980, que visavam à unificação e fundação do CI-CI [Comitê Internacional – Quarta Internacional]. Há uma bela foto nossa com alguns camaradas dentro da Igreja de Notre Dame. Adorávamos conhecer Paris, e Zezé estava muito elegante com uma boina que lhe dava um ar francês. Era inverno. Riamos entre nós, porque havíamos apelidado o dirigente do grupo lambertista no Brasil, cujo nome não me lembro, de “caçador de borboletas”. Infelizmente, o processo foi frustrado pela capitulação de Lambert e de sua corrente ao governo de “frente popular”, de conciliação de classes, do social-democrata Mitterrand. Retornamos a Bogotá e fundamos a LIT-QI, em janeiro de 1982.

CS: Qual a importância da internacional para a organização trotskista morenista que é fundada no Brasil em 1974? E posteriormente na CS?

MP: A razão de ser de uma organização internacional é promover o desenvolvimento dos partidos trotskistas em cada país. Não se trata de uma frase protocolar, mas da forma como sempre atuamos no morenismo. Isso porque fomos formados, educados, na convicção de que, sem uma internacional, por menor que seja, a tarefa de construir um partido revolucionário não pode prosperar com sucesso. E a direção internacional se nutre e amadurece acompanhando esse desenvolvimento, não apenas com elaborações teóricas e políticas, como a revista e os documentos internacionais, mas com viagens, reuniões e contato permanente. É por isso que Zezé e eu compartilhamos tantos encontros e visitas a Bogotá com os dirigentes da corrente. E eu viajei muito quando era mais jovem. Isso é geral, vale para todos os grupos morenistas e para a direção internacional desde tempos imemoriais. Para além disso – e do grande carinho de Moreno por Zezé, com quem podemos dizer que ele tinha uma amizade pessoal –, eu lhe diria duas coisas.

A primeira é que o apoio a essa iniciativa de avanço no Brasil foi importante para dar suporte a um grupo de camaradas que, com determinação e coragem, se propôs a construir um partido trotskista sob a ditadura, a Liga Operária, e, posteriormente, a Convergência Socialista. No Brasil, não apenas na década de 1960 (o golpe ocorreu em 1964), mas também no início da década de 1970, a repressão foi muito severa. Os primeiros sinais de enfraquecimento do regime começaram a aparecer em meados e no final da década de 1970.

A segunda é a importância que atribuíamos à jovem e pujante classe trabalhadora brasileira. Moreno sempre disse que gostaria de ter tido um partido com a experiência e a trajetória do partido argentino, mas em São Paulo, no ABC ou em Belo Horizonte. Essa vitalidade da nova classe trabalhadora brasileira começou a se expressar fortemente com a onda de greves que se iniciou em 1978-79, as ocupações de fábricas e todo o processo revolucionário que levou à fundação do PT, no qual a CS esteve presente desde o início, com a moção apresentada naquele histórico congresso de Lins, em 1979. E depois na fundação e massificação da CUT, com os novos sindicatos de luta que varreram os burocratas pelegos. Isso permitiu um grande avanço para os trotskistas, que tiveram uma participação destacada em vários processos, como em São José dos Campos; em Belo Horizonte/Contagem, em Minas Gerais; e na própria direção da CUT.

 

CS: Um camarada antigo chegou a falar conosco de tua militância quando das prisões de 1978, na campanha de solidariedade. É verdade que Moreno corria risco de ser assassinado pela ditadura argentina? Poderias nos contar algo?

MP: Com certeza. O risco era muito real. Moreno constava nas listas dos “condenados” pela Triple A [Aliança Anticomunista Argentina, esquadrão da morte de extrema-direita] desde antes de março de 1976. Desde 1975, o PST operava sob rígidas normas de clandestinidade, e Moreno, em particular, tinha movimentos muito restritos. Quando viajou de Bogotá para São Paulo, em 1978, foi preso junto com grande parte da direção da CS, Ritita, da direção argentina, e um membro da direção do partido português. Entre os detidos estava o querido companheiro Zezoka, que faleceu recentemente. Se Moreno tivesse sido deportado para Buenos Aires, sua vida estaria em tremendo perigo, tendo em vista a vigência do regime militar genocida. Sequestros e desaparecimentos eram comuns. Empreendemos uma vigorosa campanha internacional e conseguimos que a polícia política os “expulsasse” para a Colômbia. O Alto Comissariado das Nações Unidas os acompanhou até que fossem recebidos em segurança no consulado colombiano, em São Paulo. Em seguida, retornaram a Bogotá. Em 1985, a direção da CS – em particular o camarada Zé Cretton, que havia sido preso em 1978 – dedicaram esforços significativos para que a polícia e o governo suspendessem a proibição de Moreno de visitar o país, após sua expulsão em 1978. Eu morava em São Paulo e, com Zezé e Jorge, tivemos a grande alegria de recebê-lo de volta em São Paulo.

CS: Na intervenção, citas algo de tua militância no Brasil. Poderias dizer algo daquele período? Ainda era a ditadura militar?

MP: Fiz várias viagens para o Brasil, a partir de Bogotá, quando a CS operava na clandestinidade. Por exemplo, no início de 1981, realizamos um curso com a direção e os quadros da CS para ler e discutir as Teses do CI-CI, o texto programático votado durante a unificação com o CORQUI [Comitê de Reconstrução da Quarta Internacional], a corrente lambertista. Foi muito bom, com muita participação e entusiasmo. Pouco depois, a unidade ruiu, mas a CS, como toda a LIT-QI da época, soube lidar com a situação e continuamos a progredir. Acho que o grupo “lambertos” [lambertistas] entrou em declínio. Zezé e Jorge retornaram [ao Brasil] em 80 ou 81, se não me engano. E, no auge do ascenso de massas, começamos a ganhar terreno significativo no novo sindicalismo. Por isso, de 1984 até o final de 1985, fui militar em São Paulo, para acompanhar a construção do partido nesse processo de luta e reorganização do movimento operário; para acompanhar a massificação da CUT e os primeiros passos da construção do PT, que começou como um partido operário de vanguarda e, ao longo dos anos, conquistou influência de massas. Os trabalhadores em greve realizavam assembleias em campos de futebol.

6 – Certa vez falastes de reuniões aqui, junto com Moreno. Eram debates sobre a construção de equipes de direção. Qual a importância da formação de equipes num partido trotskista morenista?

Na concepção de partido que nos foi legada por Lênin e pela experiência dos bolcheviques, os/as militantes atuam em organismos relativamente pequenos, que chamamos de “células” ou “equipes”. Assim, a equipe proporciona um espaço para a discussão e a ação coletiva, colocando em prática a política e as atividades do partido. Isso se aplica ao funcionamento da direção. Deve ser uma equipe, a fim de distribuir tarefas, aprimorar as habilidades de cada membro e, em conjunto, estudar e acompanhar a realidade, desenvolver políticas e promover a construção do partido e de suas equipes, para ter um número cada vez maior de militantes. À medida que a organização cresce, haverá dirigentes que vivem o partido, profissionais, para se dedicarem em tempo integral ao trabalho partidário. E, de cima a baixo, tudo é discutido nos organismos, e o que é resolvido coletivamente é aplicado, posto em prática.

Chamamos isso de centralismo democrático. É o oposto do verticalismo do stalinismo, com um déspota intitulado “secretário-geral”, como foi Joseph Stalin, à frente de um aparato burocrático ditatorial e horrendo, que traiu a política e o programa revolucionários e levou a URSS e o  chamado “socialismo real” ao colapso e ao retorno do capitalismo. Na década de 1920, após a morte de Lenin, foi Trotsky quem deu continuidade à luta que vinham travando contra o retrocesso político e burocrático. Assim surgiram o trotskismo e a Quarta Internacional.

CS: Sabemos de tua intensa preocupação com a formação teórica de novos quadros, nos armando para a intervenção na luta de classes. Zezé e muitos antigos camaradas falaram de uma lendária escola de quadros na Argentina. Qual a importância da formação teórica num partido revolucionário?

MP: Desde a década de 1970, militantes brasileiros participavam de cursos e escolas de quadros [na Argentina]. Talvez essa lembrança em particular seja de uma das escolas que conseguimos realizar em 1982, no prédio enorme da Rua Peru. Eles participavam do que chamávamos de “escola teórica”, com temas básicos marxistas. Estudávamos materialismo histórico, as “teses sobre Feuerbach”, alienação e outros temas. [2] Também estudávamos outros assuntos, sobre diferentes processos revolucionários que ocorreram no século XX. Eu acrescentaria também que, quando nos visitavam para cursos ou reuniões no inverno, [os brasileiros] sempre reclamavam muito do frio e estavam agasalhados com gorros de lã, luvas e cachecóis.

CS: Num mundo em desordem mundial com Trump, com genocídio em Gaza e uma resistência ainda de pé, uma ditadura capitalista liderada por um partido “comunista” na China…. Segue vigente o legado teórico e político de Nahuel Moreno?

MP: Moreno faleceu em janeiro de 1987. Quase 40 anos se passaram. Não há dúvida de que, entre o final do século XX e o início do século XXI, ocorreram novos fenômenos e imensos eventos políticos, que Moreno não vivenciou. Como, por exemplo, a queda do Muro de Berlim, a dissolução da antiga URSS e a restauração do capitalismo nos países em que a burguesia havia sido expropriada. Houve também a ascensão da extrema-direita em todo o mundo e o avanço da destruição ambiental capitalista. Porém, em essência, o legado teórico e político de Nahuel Moreno permanece vigente. Suas elaborações políticas e teóricas, dentro do marxismo revolucionário, seguem tendo grande atualidade para as novas gerações de revolucionários.

Ao longo de sua obra escrita, por exemplo, ele lutou consistentemente contra os setores oportunistas e revisionistas da esquerda e do trotskismo, como Ernest Mandel, que pregava que o capitalismo ainda poderia crescer e se desenvolver. Moreno insistiu no oposto: que o sistema capitalista-imperialista ainda estava em meio à decadência que Lênin e Trotsky já haviam analisado desde a Primeira Guerra Mundial. E que, desde 1968, essa decadência havia se agravado e uma crise econômica crônica se instalara. Décadas após sua morte, vemos que a humanidade está sofrendo uma catástrofe devido à superexploração, à pobreza e até mesmo a uma pandemia global. O capitalismo está passando pela pior crise de sua história. As consequências são sofridas pelas massas, com bilhões de pessoas vivendo na pobreza absoluta. Moreno reafirmou a validade da lei de Karl Marx da tendência à pauperização crescente. No século XXI, somou-se o agravamento do desastre ambiental capitalista. Foi por isso que Moreno manteve e enfatizou a advertência de Trotsky: “Socialismo ou barbárie/ catástrofe!” Uma disjuntiva que continua válida.

Outro aspecto fundamental de seu legado é que Moreno reafirmou que os pilares da fundação da Quarta Internacional (1938) permaneciam válidos e que a grande tarefa é superar a crise da direção revolucionária, construindo partidos revolucionários em todo o mundo, no calor da batalha e intervindo nas lutas operárias e populares. [3]

CS: Há setores oriundos do morenismo que têm uma visão diferente do seu legado. Eles acreditam que tudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, precisa ser reformulado e repensado. O que você acha?

MP: Precisamos sempre retrabalhar e repensar. Foi isso que Moreno nos ensinou. Ele insistia que o marxismo é aberto e que, diante de novas realidades, não podemos agir com esquemas. No entanto, isso somente se essas novas elaborações tiverem uma base metodológica marxista correta.

Por exemplo, à luz dos novos fenômenos que Moreno não vivenciou, algumas de suas hipóteses não se concretizaram. Moreno considerou a possibilidade de que, com a crise e a queda do stalinismo, correntes revolucionárias de massa emergissem e que isso pudesse contribuir para o surgimento de grandes partidos revolucionários. Infelizmente, essa previsão, por enquanto, não se concretizou.

Pode haver outros casos específicos como esse. Porém, isso não altera de forma alguma a vigência geral de seu legado teórico e político. E assumimos isso com ainda mais força diante da desintegração do morenismo, a partir da década de 1990. Foram os erros de todos nós, que compúnhamos a direção sem Moreno, que provocaram esse retrocesso. Nós, da UIT-QI, aceitamos isso após considerável discussão, quando aprovamos um balanço autocrítico do período de 1987-1992, em 1997 [4], que tornamos público anos atrás. Até onde sabemos, fomos os únicos daquela direção, vigente durante aqueles anos de crise após a morte de Moreno, que realizaram uma autocrítica de nossos erros, de nossas políticas falhas e nossos métodos equivocados.

Por isso, por exemplo, considero muito equivocadas as críticas a grande parte da obra de Moreno feitas pela corrente que manteve o nome LIT-QI, após a ruptura e a divisão do início da década de 1990, e que ainda se apresenta como “morenista”.

A direção dessa corrente publicou um longo texto em seu site intitulado “Sobre as situações da luta de classes nacional e mundial”, no qual questiona grande parte da importante elaboração de Nahuel Moreno.

É claro que não tenho espaço aqui para responder a tudo o que, surpreendentemente, aponta o texto. Vou abordar apenas dois pontos para mostrar as distorções e a falta de sustentação de suas críticas e revisões. Após a Segunda Guerra Mundial, começou a emergir um fato novo: direções não revolucionárias lideraram revoluções, que avançaram em direção à expropriação da burguesia (Iugoslávia, China, Cuba e Vietnã). A ocupação da Europa Oriental pelo Exército Vermelho (Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental) também avançou nessa direção. Em nenhum desses processos o sujeito social foi a classe operária, nem existiu um partido marxista revolucionário à frente, como proposto pelo marxismo revolucionário. Trotsky, no Programa de Transição, havia apontado que essa possibilidade “era a variante improvável”, ou seja, um caso excepcional. Mas ocorreu o oposto. Diante da confusão generalizada em torno dos novos fatos no seio do trotskismo do pós-guerra, Moreno foi sábio ao reconhecer as realidades imprevistas e dar-lhes uma interpretação correta, sem ceder às direções contrarrevolucionárias stalinistas ou pequeno-burguesas (Cuba). Moreno observou que “a realidade era mais trotskista do que nós, trotskistas, imaginávamos”. Ele enfatizou a força da mobilização revolucionária das massas naquele período, que deu origem às novas situações, nas quais o que Trotsky havia previsto como “improvável” se tornou “norma” ou “lei” das novas expropriações do imediato pós-guerra. Sem cair no sectarismo (negação dos triunfos revolucionários e das expropriações) ou no oportunismo (enaltecimento das direções contrarrevolucionárias), ele analisou essas realidades e as explicou por meio de uma combinação de causas. [5] Agora, os dirigentes da LIT-QI, em seu texto, distorcem o que Moreno disse. Eles fazem uma interpretação falsa, afirmando que Moreno formulou uma “lei” (citado no ponto 14 do texto). E, antes disso, declaram que Moreno criticou Trotsky – que, aliás, havia sido assassinado cinco anos antes dos eventos – pelo prognóstico não cumprido. Isso é falso. Moreno nunca criticou Trotsky por esse prognóstico. Ele apenas apontou a contradição e deu sua interpretação marxista (ver “Revoluções do Século XX”, disponível em www.nauhuelmreno.org).

Em segundo lugar, os atuais dirigentes da LIT-QI afirmam que Moreno chegou à conclusão “errônea” de que se tratava de uma “lei” e que ele propunha “projetar a necessária continuidade desse processo para o futuro” (ponto 15 do texto citado). Isso é duplamente falso, tendo em vista que Moreno nunca escreveu a palavra “lei” em seus textos (“Revoluções do Século XX” ou “Atualização do Programa de Transição”). Tampouco disse que seria isso que predominaria ou “se projetaria” dali em diante. Ele apenas mencionou isso numa intervenção oral (cuja transcrição foi publicada após a sua morte e sem que ele a revisasse), como algo oposto a uma “exceção”. Porém, mais importante: é falso que Moreno tenha falado de uma “lei” no sentido de que ela excluiria a luta por revoluções socialistas, cessando assim a luta pela direção da classe trabalhadora, e, menos ainda, que deixaríamos de construir partidos revolucionários, uma vez que, segundo essa “lei”, o poder operário e a expropriação seriam conquistados pelo stalinismo e pelas direções reformistas. É incrível que essa distorção ou falsificação do pensamento e do programa de Nahuel Moreno esteja sendo escrita por aqueles que ainda se autodenominam morenistas. Na verdade, eles estão abrindo o caminho para que setores como o PTS (FT) e o PO falsifiquem o pensamento de Moreno, acusando-o de ser um “etapista”, que revisou a teoria da revolução permanente.

Em outra parte do texto, a direção da LIT-QI critica – ou “descobre” -, depois de mais de 40 anos, Moreno como um “objetivista”, algo que teria sido a causa de “graves erros de análise e caracterização” (ponto 91 do texto citado). Segundo a direção da LIT-QI, o objetivismo “abriu espaço para a expectativa de uma rápida superação da crise da direção revolucionária e da massificação dos partidos revolucionários (…) basta imaginar a quantidade de erros que devemos ter cometido nas definições de nossas tarefas”. Porém, surpreendentemente, eles quase não mencionam nenhum erro do período de Moreno, enquanto ele ainda estava vivo. Mencionam apenas as Teses de 90, quando Moreno já não estava mais vivo. Culpam Moreno pelos erros que se seguiram à sua morte. Como dizemos em nossa autocrítica, nosso pecado foi ir contra os ensinamentos de Moreno. Além disso, sinceramente, o texto dá a impressão de que a direção da LIT-QI quer atribuir a Moreno, após quase 40 anos de sua morte, suas próprias crises, fracassos e retrocessos como corrente. Já apontamos os erros sectários e autoproclamados desse setor mais de uma vez. Não foi Moreno quem, desde a década de 1990, proclamou de forma sectária a LIT-QI como a única corrente revolucionária, rejeitando outros setores revolucionários, mesmo os oriundos do morenismo. Moreno propôs a unidade dos revolucionários, a frente única revolucionária, para tentar reconstruir ou refundar a Quarta Internacional. Moreno combateu o sectarismo e a auto-proclamação tanto quanto o oportunismo.

CS: Diga-nos em poucas palavras o que é ser trotskista hoje?

 MP: Hoje, em primeiro lugar, é manter, com coerência e clareza, a continuidade da longa luta da classe operária, dos setores populares e dos socialistas revolucionários contra o capitalismo-imperialista e pelo triunfo de governos dos/as trabalhadores/as e dos setores oprimidos e do socialismo em todos os países e no mundo. São mais de um século e meio de experiências, algumas bem-sucedidas, outras fracassadas, desde Marx, Engels e o Manifesto Comunista até a dura realidade de hoje, quando vivemos e sofremos a maior crise e colapso capitalista da história. Diante disso, nós, trotskistas morenistas, dizemos que devemos impulsionar e apoiar todas as lutas justas, democráticas e anticapitalistas e lutar para construir novas alternativas de direção, unindo os revolucionários, com a perspectiva de reconstruir a Quarta Internacional. Não é fácil, porque a alternativa é socialismo ou catástrofe, mas vale a pena dedicar os maiores esforços a esses objetivos, que para mim são a razão de ser do trotskismo.

CS: Agradecemos pelo tempo dedicado à nossa entrevista. Antes de encerrar, deixe um recado aos nossos leitores.

 MP: Só quero agradecer a oportunidade. E reivindicar o clima fraterno e respeitoso que permeou toda a jornada de homenagem à Zezé, pois relações fraternais e respeitosas são essenciais para o avanço das enormes tarefas e desafios que nós, revolucionários, temos pela frente.

Notas:

[1] Ver o livro “A Brigada Simon Bolívar”, publicado em português, e o texto “As perspectivas e a política revolucionária após o triunfo da revolução nicaraguense”, de 1979, disponível em https://nahuelmoreno.org/1979-las-perspectivas-y-la-politica-revolucionaria-despues-del-triunfo-de-la-revolucion-nicaraguense/

 

[2] Em 2023, a editora Cehus publicou um livro, “Sobre o Marxismo”, que resgata as transcrições dos cursos de Moreno. Está disponível em https://nahuelmoreno.org/sobre-el-marxismo-1984/

 

[3] Ver a tese 1 do livro “Atualização do Programa de Transição”, de 1980, “As bases de fundação da Quarta Internacional foram confirmados pela história”. Disponível em https://nahuelmoreno.org/1980-actualizacion-del-programa-de-transicion/

 

[4] “Balanço histórico do MAS. Período 1987-1992”. Disponível em https://nahuelmoreno.org/balance-historico-del-mas-1997/

 

[5] ver “As Revoluções do Século XX”, disponível em https://nahuelmoreno.org/1984-las-revoluciones-del-siglo-xx/, e também várias das teses do livro “Atualização do Programa de Transição” já citado.