Alguns debates com a LIT-QI e o PSTU sobre o legado de Nahuel Moreno

No dia 19 de abril, na sede da CSP-CONLUTAS, em São Paulo, foi realizado um ato unitário em homenagem à dirigente fundadora da corrente trotskista morenista internacional e brasileira, Maria José Lourenço (Zezé), que faleceu recentemente. Entre as oradoras, estava Mercedes Petit, dirigente de longa trajetória em nossa organização (a UIT-QI). Após o evento, nosso jornal a entrevistou. Reproduzimos abaixo as perguntas e respostas específicas sobre a vigência e a atualidade do legado teórico e político de Moreno e as novas posições de dirigentes da LIT-QI e do PSTU. A entrevista completa pode ser lida em Conversando com Mercedes Petit. Boa leitura!
Acima, Mercedes Petit em no momento de sua intervenção no ato unitário.
CS: Num mundo em desordem mundial com Trump, com genocídio em Gaza e uma resistência ainda de pé, uma ditadura capitalista liderada por um partido “comunista” na China…. Segue vigente o legado teórico e político de Nahuel Moreno?
MP: Moreno faleceu em janeiro de 1987. Quase 40 anos se passaram. Não há dúvida de que, entre o final do século XX e o início do século XXI, ocorreram novos fenômenos e imensos eventos políticos, que Moreno não vivenciou. Como, por exemplo, a queda do Muro de Berlim, a dissolução da antiga URSS e a restauração do capitalismo nos países em que a burguesia havia sido expropriada. Houve também a ascensão da extrema-direita em todo o mundo e o avanço da destruição ambiental capitalista. Porém, em essência, o legado teórico e político de Nahuel Moreno permanece vigente. Suas elaborações políticas e teóricas, dentro do marxismo revolucionário, seguem tendo grande atualidade para as novas gerações de revolucionários.
Ao longo de sua obra escrita, por exemplo, ele lutou consistentemente contra os setores oportunistas e revisionistas da esquerda e do trotskismo, como Ernest Mandel, que pregava que o capitalismo ainda poderia crescer e se desenvolver. Moreno insistiu no oposto: que o sistema capitalista-imperialista ainda estava em meio à decadência que Lênin e Trotsky já haviam analisado desde a Primeira Guerra Mundial. E que, desde 1968, essa decadência havia se agravado e uma crise econômica crônica se instalara. Décadas após sua morte, vemos que a humanidade está sofrendo uma catástrofe devido à superexploração, à pobreza e até mesmo a uma pandemia global. O capitalismo está passando pela pior crise de sua história. As consequências são sofridas pelas massas, com bilhões de pessoas vivendo na pobreza absoluta. Moreno reafirmou a validade da lei de Karl Marx da tendência à pauperização crescente. No século XXI, somou-se o agravamento do desastre ambiental capitalista. Foi por isso que Moreno manteve e enfatizou a advertência de Trotsky: “Socialismo ou barbárie/catástrofe!” Uma disjuntiva que continua válida.
Outro aspecto fundamental de seu legado é que Moreno reafirmou que os pilares da fundação da Quarta Internacional (1938) permaneciam válidos e que a grande tarefa é superar a crise da direção revolucionária, construindo partidos revolucionários em todo o mundo, no calor da batalha e intervindo nas lutas operárias e populares.
Na foto, um congresso ou reunião da LIT-QI em fins dos anos 1980: nossa camarada Mercedes Petit junto a Zezé e dirigentes como Eduardo Expósito, Eduardo Almeida e Bill Hunter, dentre outros.
CS: Há setores oriundos do morenismo que têm uma visão diferente do seu legado. Eles acreditam que tudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, precisa ser reformulado e repensado. O que você acha?
MP: Precisamos sempre retrabalhar e repensar. Foi isso que Moreno nos ensinou. Ele insistia que o marxismo é aberto e que, diante de novas realidades, não podemos agir com esquemas. No entanto, isso somente se essas novas elaborações tiverem uma base metodológica marxista correta.
Por exemplo, à luz dos novos fenômenos que Moreno não vivenciou, algumas de suas hipóteses não se concretizaram. Moreno considerou a possibilidade de que, com a crise e a queda do stalinismo, correntes revolucionárias de massa emergissem e que isso pudesse contribuir para o surgimento de grandes partidos revolucionários. Infelizmente, essa previsão, por enquanto, não se concretizou.
Pode haver outros casos específicos como esse. Porém, isso não altera de forma alguma a vigência geral de seu legado teórico e político. E assumimos isso com ainda mais força diante da dispersão do morenismo, a partir da década de 1990. Foram os erros de todos nós, que compúnhamos a direção sem Moreno, que provocaram esse retrocesso. Nós, da UIT-QI, aceitamos isso após considerável discussão, quando aprovamos um balanço autocrítico do período de 1987-1992, em 1997, que tornamos público anos atrás. Até onde sabemos, fomos os únicos daquela direção, vigente durante aqueles anos de crise após a morte de Moreno, que realizaram uma autocrítica de nossos erros, de nossas políticas falhas e nossos métodos equivocados.
Por isso, por exemplo, considero muito equivocadas as críticas a grande parte da obra de Moreno feitas pela corrente que manteve o nome LIT-QI, após a ruptura e a divisão do início da década de 1990, e que ainda se apresenta como “morenista”.
A direção dessa corrente publicou um longo texto em seu site intitulado “Sobre as situações da luta de classes nacional e mundial”, no qual questiona grande parte da importante elaboração de Nahuel Moreno.
É claro que não tenho espaço aqui para responder a tudo o que, surpreendentemente, aponta o texto. Vou abordar apenas dois pontos para mostrar as distorções e a falta de sustentação de suas críticas e revisões. Após a Segunda Guerra Mundial, começou a emergir um fato novo: direções não revolucionárias lideraram revoluções, que avançaram em direção à expropriação da burguesia (Iugoslávia, China, Cuba e Vietnã). A ocupação da Europa Oriental pelo Exército Vermelho (Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental) também avançou nessa direção. Em nenhum desses processos o sujeito social foi a classe operária, nem existiu um partido marxista revolucionário à frente, como proposto pelo marxismo revolucionário. Trotsky, no Programa de Transição, havia apontado que essa possibilidade “era a variante improvável”, ou seja, um caso excepcional. Mas ocorreu o oposto. Diante da confusão generalizada em torno dos novos fatos no seio do trotskismo do pós-guerra, Moreno foi sábio ao reconhecer as realidades imprevistas e dar-lhes uma interpretação correta, sem ceder às direções contrarrevolucionárias stalinistas ou pequeno-burguesas (Cuba). Moreno observou que “a realidade era mais trotskista do que nós, trotskistas, imaginávamos”. Ele enfatizou a força da mobilização revolucionária das massas naquele período, que deu origem às novas situações, nas quais o que Trotsky havia previsto como “improvável” se tornou “norma” ou “lei” das novas expropriações do imediato pós-guerra. Sem cair no sectarismo (negação dos triunfos revolucionários e das expropriações) ou no oportunismo (enaltecimento das direções contrarrevolucionárias), ele analisou essas realidades e as explicou por meio de uma combinação de causas. Agora, os dirigentes da LIT-QI, em seu texto, distorcem o que Moreno disse. Eles fazem uma interpretação falsa, afirmando que Moreno formulou uma “lei” (citado no ponto 14 do texto). E, antes disso, declaram que Moreno criticou Trotsky – que, aliás, havia sido assassinado cinco anos antes dos eventos – pelo prognóstico não cumprido. Isso é falso. Moreno nunca criticou Trotsky por esse prognóstico. Ele apenas apontou a contradição e deu sua interpretação marxista (ver “Revoluções do Século XX”, disponível em www.nauhuelmreno.org).
Em segundo lugar, os atuais dirigentes da LIT-QI afirmam que Moreno chegou à conclusão “errônea” de que se tratava de uma “lei” e que ele propunha “projetar a necessária continuidade desse processo para o futuro” (ponto 15 do texto citado). Isso é duplamente falso, tendo em vista que Moreno nunca escreveu a palavra “lei” em seus textos (“Revoluções do Século XX” ou “Atualização do Programa de Transição”). Tampouco disse que seria isso que predominaria ou “se projetaria” dali em diante. Ele apenas mencionou isso numa intervenção oral (cuja transcrição foi publicada após a sua morte e sem que ele a revisasse), como algo oposto a uma “exceção”. Porém, mais importante: é falso que Moreno tenha falado de uma “lei” no sentido de que ela excluiria a luta por revoluções socialistas, cessando assim a luta pela direção da classe trabalhadora, e, menos ainda, que deixaríamos de construir partidos revolucionários, uma vez que, segundo essa “lei”, o poder operário e a expropriação seriam conquistados pelo stalinismo e pelas direções reformistas. É incrível que essa distorção ou falsificação do pensamento e do programa de Nahuel Moreno esteja sendo escrita por aqueles que ainda se autodenominam morenistas. Na verdade, eles estão abrindo o caminho para que setores como o PTS (FT) e o PO falsifiquem o pensamento de Moreno, acusando-o de ser um “etapista”, que revisou a teoria da revolução permanente.
Em outra parte do texto, a direção da LIT-QI critica – ou “descobre” -, depois de mais de 40 anos, Moreno como um “objetivista”, algo que teria sido a causa de “graves erros de análise e caracterização” (ponto 91 do texto citado). Segundo a direção da LIT-QI, o objetivismo “abriu espaço para a expectativa de uma rápida superação da crise da direção revolucionária e da massificação dos partidos revolucionários (…) basta imaginar a quantidade de erros que devemos ter cometido nas definições de nossas tarefas”. Porém, surpreendentemente, eles quase não mencionam nenhum erro do período de Moreno, enquanto ele ainda estava vivo. Mencionam apenas as Teses de 90, quando Moreno já não estava mais vivo. Culpam Moreno pelos erros que se seguiram à sua morte. Como dizemos em nossa autocrítica, nosso pecado foi ir contra os ensinamentos de Moreno. Além disso, sinceramente, o texto dá a impressão de que a direção da LIT-QI quer atribuir a Moreno, após quase 40 anos de sua morte, suas próprias crises, fracassos e retrocessos como corrente. Já apontamos os erros sectários e autoproclamados desse setor mais de uma vez. Não foi Moreno quem, desde a década de 1990, proclamou de forma sectária a LIT-QI como a única corrente revolucionária, rejeitando outros setores revolucionários, mesmo os oriundos do morenismo. Moreno propôs a unidade dos revolucionários, a frente única revolucionária, para tentar reconstruir ou refundar a Quarta Internacional. Moreno combateu o sectarismo e a auto-proclamação tanto quanto o oportunismo.
Acima, foto em Notre Dame mencionada em outro momento da entrevista: aparecem Zezé, Mercedes Petit, Martin Hernandez, Pedro Fuentes e Miguel Sorans, além de outras e outros dirigentes.
CS: Diga-nos em poucas palavras o que é ser trotskista hoje?
MP: Hoje, em primeiro lugar, é manter, com coerência e clareza, a continuidade da longa luta da classe operária, dos setores populares e dos socialistas revolucionários contra o capitalismo-imperialista e pelo triunfo de governos dos/as trabalhadores/as e dos setores oprimidos e do socialismo em todos os países e no mundo. São mais de um século e meio de experiências, algumas bem-sucedidas, outras fracassadas, desde Marx, Engels e o Manifesto Comunista até a dura realidade de hoje, quando vivemos e sofremos a maior crise e colapso capitalista da história. Diante disso, nós, trotskistas morenistas, dizemos que devemos impulsionar e apoiar todas as lutas justas, democráticas e anticapitalistas e lutar para construir novas alternativas de direção, unindo os revolucionários, com a perspectiva de reconstruir a Quarta Internacional. Não é fácil, porque a alternativa é socialismo ou catástrofe, mas vale a pena dedicar os maiores esforços a esses objetivos, que para mim são a razão de ser do trotskismo.
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