A China é imperialista (texto 1)

Apresentação da primeira edição brasileira do livro sobre China

Miguel Sorans, Dirigente do Izquierda Socialista (Argentina) e da UIT-QI

 

A China é um dos temas de debate mais emocionantes do século XXI. Trata-se de um novo fenômeno político, econômico e social, cuja interpretação e futuro são discutidos desde economistas e políticos burgueses até toda a esquerda, passando por intelectuais ou acadêmicos de todo o mundo. A edição deste livro, em português, é uma nova contribuição a este debate aberto. É uma contribuição a partir de uma visão marxista revolucionária, centrada nas elaborações de Nahuel Moreno sobre o significado e o caráter da revolução socialista de 1949 e suas contradições. O livro contém textos que analisam a realidade que vai de 1949 ao século XXI. Mostra a gênese do processo político social que vai desde a expropriação da burguesia na China até a restauração do capitalismo. Textos que também mostram como foi avançando a elaboração de Nahuel Moreno e sua corrente atual. Nahuel Moreno faleceu em 1987 e não pôde ver o ápice do processo de restauração capitalista na China. Mas, nos últimos anos de sua vida, já vinha estudando e denunciando a virada para os acordos com as multinacionais e o imperialismo por parte da direção do Partido Comunista da China (PCCH) e os perigos restauracionistas. Como continuadores da elaboração de nosso mestre Moreno, afirmamos categoricamente que a China é com certeza uma potência capitalista governada por uma ditadura de par tido único, o PCCH.

É um fenômeno sem precedentes na história. O país mais populoso do planeta, com 1,4 bilhão de habitantes, deixou de ser um grande país onde a economia havia sido reorganizada com a propriedade estatal e planejamento centralizado para um onde a propriedade privada e o capitalismo foram restaurados. Na China, centenas de milhões de trabalhadores são explorados. O inédito é que seus governantes ainda têm o cinismo de dizer que continuam a “desenvolver o socialismo”. Questão reafirmada pelo presidente Xi Jimping ao anunciar o XIV Plano Quinquenal (2021-2025) que teria o objetivo de apoiar “a causa da modernização” da China “no desenvolvi mento do socialismo com características chinesas” (Clarín, da Argentina, 11/01/2021). Com base na convicção de que o capitalismo foi restaura do na China e pela peculiaridade do salto qualitativo ocorri do nos últimos trinta anos, como marxistas estamos abertos a mudanças e ajustes de definições. É o que destacou Reinaldo Saccone na apresentação da edição espanhola em 2019: “As definições que o leitor encontrará nos textos mais atuais estarão sempre abertas a novas elaborações, pois qualquer definição pode ser superada pela realidade”. E foi isso que aconteceu. Nossa corrente internacional con tinuou a estudar o desenvolvimento da China, e como resulta do de uma elaboração coletiva, no VII Congresso Mundial da UIT-CI, realizado em dezembro de 2020, chegou à conclusão de que as definições da China, assim como da Rússia, como um país semicolonial e subimperialista, haviam sido supera das pelos feitos. E que, portanto, era mais apropriado definir a China como um país imperialista. Continuamos acreditando que, desde 1978, liderado por Deng, teve início um processo de semicolonização na China a partir da penetração econômica das multinacionais. Processo que culminou com a restauração do capitalismo nos anos 1990. A China, em razão do atraso no seu desenvolvimento, não poderia avançar sozinha no sentido capitalista se não se associasse às multinacionais imperialistas, favorecendo-as com um regime de trabalho semiescravo da classe trabalhadora chinesa. Para desenvolver os grandes setores industriais do capita lismo, como automóveis, eletrônicos ou outros bens duráveis, não teve outra opção senão se associar a multinacionais ianques, europeias ou japonesas. Estima-se que atualmente seriam mais de 70 mil. A partir daí a China criou sua própria burguesia e suas multinacionais (Alibaba, Huawei, a rede Tik Tok, Tencent, Lenovo, entre outras). Por isso, neste caso, esse longo processo de semicolonização acabou transformando a China não em uma semicolônia, mas em uma grande potência capitalista, um novo imperialismo, que tem fortes traços de autarquia econômica e relativa independência política frente ao imperialismo, tanto o norte-americano como o europeu. O que resultou em fortes atritos e choques comerciais, econômicos e políticos com as outras potências capitalistas. Isso não se opõe à continuação de acordos e associações com multinacionais e governos de outros países imperialistas Tanto a China quanto a Rússia têm a peculiaridade de te rem passado de Estados operários burocráticos a Estados capitalistas de dois grandes países. Já eram muito importantes por serem economias não capitalistas. A URSS, por exemplo, tornou-se a segunda potência econômica mundial. E por isso se portou como uma metrópole em relação a países menores como a Alemanha Democrática, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, etc. Em seguida, definimos que eram países politica mente independentes, embora tivessem dependência econômica do mercado capitalista internacional. Eram, por sua vez, parte de uma grande frente contrarrevolucionária para evitar revoluções no mundo, no período anterior à queda do Muro de Berlim, em 1989. A China, em particular, deu o salto para um país imperialista a partir da acumulação capitalista realizada através da su perexploração de uma população trabalhadora e camponesa de cerca de 1 bilhão de pessoas. Com salários mensais na indústria de 60 ou 70 dólares, em média, durante décadas, algo também inédito na história do capitalismo. Soma-se a isso a perda de conquistas sociais da revolução socialista de 1949. O caráter da China como país imperialista fica evidente, por exemplo, na expansão agressiva dos investimentos interna cionais nos últimos anos, especialmente em recursos naturais (mineração, entre eles), bem como nos investimentos em trans portes, principalmente em atividades portuárias e ferroviárias. A China tornou-se o primeiro país investidor na África com, por exemplo, 72,2 bilhões de dólares diretamente entre os anos de 2014 e 2018. Com a França em segundo lugar e os Estados Unidos na terceira posição (dados da agência de notícias TRP, 10/10/2019). Os investimentos chineses têm se expandido rapidamente na Europa e na América Latina. Uma de suas expressões tem sido a compra compulsiva de empresas. Na Itália, a China comprou por um valor de 32 bilhões de dólares, em apenas 85 acordos. O mais importante foi a com pra em 2015 da Pirelli pela China National Chemical Corp, por 7 bilhões de dólares. Na Alemanha, investiu 20 bilhões de dólares em 225 acordos, sendo o maior deles a compra da em presa de máquinas industriais KUKA AG, a joia da robótica alemã, que repassou, em 2016, ao consórcio chinês Midea por 4 bilhões de dólares. Na Grã-Bretanha, foi a compra massiva de ações da multinacional mineradora anglo-australiana Rio Tinto, segunda maior mineradora do planeta, por 14 bilhões de dólares. Outro grande investimento da China na Europa foi a compra da empresa suíça de pesticidas, Syngenta, por um valor de 46 bilhões de dólares. (Dados de Néstor Parrondo em GQ, agência estatal espanhola de notícias, 10/05/2018). Isso explica porque, em dezembro de 2020, foi firmado um acordo, considerado histórico, entre a União Europeia (UE) e a China, por meio do qual se estabeleceram regras para abrir seus mercados e proteger os investimentos. Por outro lado, o acordo comercial que ficou conhecido como Rota da Seda ainda está em negociação. Até nos Estados Unidos e sob o governo de Trump, a famosa rede social chinesa Tik Tok chegou a “um acordo com a Oracle e o Wallmart para operar nos Estados Unidos” (Clarín, Argentina, 20/09/2020). Também na América Latina, a China possui fortes investi mentos no Chile, Peru, Venezuela, Bolívia, Brasil e Argentina. Um item forte é o investimento em mineração. No Chile, por exemplo, a empresa privada chinesa Tianqi Lithium adquiriu 24% do capital da mineradora chilena de lítio SQM (Sociedad Química y Minera de Chile) por 4 bilhões de dólares (El Eco nomista, Argentina, 28/08/2019). O Brasil é sede do primeiro banco industrial chinês do mundo. O Banco XCMG, do grupo Xuzhou Construction Machinery, uma das maiores empresas de fabricação de máquinas de construção. A gigante chinesa dos cereais, Cofco Corporation, concluiu, em 2017, a aquisi ção de todas as ações necessárias para absorver a empresa holandesa de grãos, Nidera, que tem forte presença como grupo exportador na Argentina. Em novembro de 2020, quinze países da Ásia e da Oceania assinaram um acordo para formar a maior associação comer cial do mundo. A China foi sua promotora e começou a negociar em 2012. “A Associação Econômica Integral Regional (RCEP, na sigla em inglês), exclui os Estados Unidos, mas terá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial. China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto junto com os dez países membros da ASEAN (Associa ção das Nações do Sudeste Asiático, composta por Indonésia, Tailândia, Cingapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Mianmar, Camboja, Laos e Brunei” (El Pais. 15/11/2020). A transformação da China em uma potência capitalista imperialista tem suas limitações e contradições. Seu “calcanhar de Aquiles” é que se baseia na superexploração de centenas de milhões de trabalhadores e setores populares do campo e da cidade. Regime de vida imposto pela feroz ditadura do PCCH. É por isso que, sobre a China e suas perspectivas não está dita a última palavra. Se houvesse uma eclosão social, uma “prima vera chinesa” ou uma nova revolução com protagonismo para a classe trabalhadora chinesa, mais uma vez a realidade do país mais populoso do planeta poderia sofrer mudanças qualita tivas políticas, econômicas e sociais. Como Nahuel Moreno apontou em 1967, em seu trabalho sobre a revolução chinesa e sua perspectiva, na China foi e é necessário derrotar a direção contrarrevolucionária do Partido Comunista da China e construir um partido marxista revolucionário. A publicação deste livro é um novo incentivo para apoiar as lutas operárias e populares do povo chinês pelo fim de sua ditadura capitalista e por uma nova China Socialista com democracia para os setores operários e populares.

18 de março de 2021.