“Sem a Liga Operária, a história seria outra, pois nenhum outro grupo assumiria o nosso papel”

 Acima, Célia Barbosa no Ato unitário em homenagem a Zezé (Maria José Lourenço)

Entrevista com Celia Barbosa, militante da Liga Operária (parte I)

 

Após o ato em homenagem à memória de Maria José Lourenço, a Zezé, entrevistamos Célia Barbosa. A companheira é independente e foi uma das responsáveis pela coordenação e organização do evento que ocorreu na sede da CSP-CONLUTAS em São Paulo.

Célia vem de uma família proletária e, muito cedo, começou a se radicalizar politicamente no contexto da ditadura militar, ingressando no movimento estudantil da USP no final dos anos 1970. Lá, entrou para a Liga Operária, organização na qual exerceu funções de direção no setor estudantil. Atuou na Convergência Socialista, no trabalho operário em Guarulhos, e posteriormente na organização da oposição gráfica em São Paulo.

A entrevista ocorreu em dois momentos. Na segunda parte, aprofundamos alguns pontos das respostas iniciais. Agradecemos à companheira pela disponibilidade e por dedicar parte de seu tempo a essa longa conversa.

Atualmente, Célia Barbosa e outras camaradas que militaram na Liga Operária estão empenhadas na edição de um livro sobre a organização, reunindo depoimentos de muitas e muitos que participaram daquelas batalhas.

Boa leitura!

 

Combate Socialista: Quando ocorreu seu ingresso na Liga Operária?

Célia Barbosa: Eu entrei na Liga Operária em 1977, após as prisões. Eu já pertencia à tendência estudantil da Liga Operária na USP, que se chamava Mobilização Estudantil. Eu entrei na universidade em 1976 nas Ciências Sociais. Já logo comecei a participar das assembleias discutindo o DCE, a reconstrução do DCE, mas ainda era tudo muito incipiente, muito amedrontado. No segundo semestre me incorporei ao movimento estudantil, fazia reuniões, escrevia pro jornal da mobilização estudantil, a página de mulheres, os artigos feministas. Retornei das férias da faculdade em 1977. Era tudo muito fechado. Não fazia ideia de que era a parte “legalizada,” pública de uma organização política clandestina. Eu achava que a ditadura havia proibido todas as organizações políticas. Só se conhecia o partido comunista, na época. Então, na minha inocência, achei que ninguém estava fazendo nada, e não conhecia outras organizações. Vim de uma família proletária. Não tinha acesso a essas informações, então mesmo me opondo à ditadura, na minha adolescência, não tinha uma formação, o que só foi acontecer na universidade.

Quando aconteceram as prisões, eu estive na assembleia, e depois eu soube que os dois operários que falaram na assembleia, Pacheco e Jeferson, (químico e metalúrgico, respectivamente), eram militantes da Liga Operária. A assembleia estava enorme, encheu de estudantes no vão do prédio da História e de Geografia. Eu estava nessa assembleia com meu amigo César, das Ciências Sociais, e ouvi eles falando. Foi uma fala muito emotiva, eles chamavam os estudantes a defenderem os trabalhadores que foram presos ao panfletarem para o 1º de Maio. Eu não tinha noção de que eram militantes da organização de cuja tendência estudantil eu já estava participando. Logo depois, no dia 5 de Maio de 1977, teve a passeata exigindo a libertação dos presos que foi o que desatou o movimento estudantil. Não pude participar da passeata em si, pois estava trabalhando, mas participava da confecção de cartazes e faixas. Pouco depois, um colega de classe, Roberto, me chamou, e fui captada pela organização. Foi o dia mais emocionante da minha vida, até o momento, pois descobri algo que deu concretude e propósito a tudo que eu pensava.

 

CS: O que lembras do contexto geral do país e da esquerda da época?

CB: O que eu me lembro do contexto do país… De início eu não tinha ideia de nada, da esquerda. Só tinha meu repúdio à ditadura. Lembro que teve um grande alvoroço com a morte do Vladimir Herzog, isso saiu na imprensa, era comentado. Soube da manifestação que teve na Praça da Sé, com o enterro dele, mas havia bastante clima de medo ainda. Por exemplo, na minha rua, onde eu morava, era uma vila dentro do bairro Jardim da Saúde, em uma vila operária, onde moravam trabalhadores. Ali houve, alguns anos antes, uma coisa que eles chamavam de “estourar um aparelho”. Eram uns jovens que tinham alugado uma casa, (davam uma bandeira), era uma espécie de república, em um bairro onde moravam operários e pessoas de classe média baixa. Um dia a polícia fez uma batida e os levou todos presos, a vizinhança toda saiu para ver. Então, era esse clima que existia em 1976, embora já pudesse se sentir uma liberdade na faculdade, diferente dos bairros e escolas, onde havia uma repressão maior. Em 1977, após a explosão das manifestações pela libertação desses companheiros, Márcia Basseto Paes, Celso Brabila, do Zé Maria, e de outros companheiros, sentia-se um clima melhor. Mas ainda ficávamos muito desconfiados e preocupados nas reuniões e assembleias, com a possibilidade de infiltrados e delatores a serviço da ditadura, mas foi ali quando começou a arrefecer. A ditadura já não estava tão de mãos livres quanto esteve até então.

 

CS: Qual foi o impacto das prisões de 1977 (Celso Brambilla, Márcia Basseto Paes e José Maria) na organização?

 

CB: Eu entrei após essas prisões. Havia de imediato uma discussão sobre segurança, mas o que eu mais percebi foi um sumiço de pessoas que eu via ali na sala, que eu conhecia, que eu via falando nas assembleias. E depois que eu entrei descobri que essas pessoas estavam escondidas. Teve um impacto grande na tendência estudantil, oradores, como a Maura, organizadores, como Ronaldo, tiveram de se esconder, sumir da vida pública, com medo de terem sido descobertos após as torturas que os companheiros sofreram. Houve um enfraquecimento do nosso trabalho, enquanto o movimento acontecia a todo vapor, e quem capitalizou com essas mobilizações foi a Refazendo (tendência estudantil da APML), que dirigia a USP, a Caminhando, tendência estudantil do PCdoB, naquele momento, e Liberdade e Luta, que era mais de esquerda. Sendo que os presos eram companheiros nossos, bem como quem deu a linha de chamar os operários e fazer a manifestações, e quem fazia as caracterizações e análises.

As análises e caracterizações da Liga Operária eram sempre muito certeiras… Porém, era um grupo muito pequeno, não conseguimos capitalizar aquele movimento, e as direções e os quadros tiveram de se esconder. Muitos assumiram o papel de direção sem experiência – eu mesma, com um mês dentro da célula, me tornei dirigente da mesma.

 

CS:      Você participou dos protestos estudantis pela libertação dos presos? Pode nos contar como foi esse processo onde você atuava? E como se preparou isso nas reuniões da Liga?

CB: Eu participei dos protestos e das assembleias, inclusive da assembleia na PUC quando houve a invasão e as prisões. O Erasmo Dias dirigia diretamente, e depois ele foi lá esbravejar. Ele era um gorila, literalmente, (com o perdão aos gorilas), tinha uma cara de facínora. Onde hoje existe um prédio em frente à PUC, na Rua Monte Alegre, era um estacionamento. E depois de terem nos encurralado, eu fiquei encurralada dentro do TUCA, e eles jogando bombas de gás lacrimogêneo, a ponto da gente quase sufocar. Tinha um banheiro nos fundos, e todo mundo entrou, no momento que a polícia (junto de outras forças de repressão) invadiu. Teve um grupo que não conseguiu descer a rampa para ir pros prédios. Teve gente que foi empurrada pros lados, para a lateral da entrada do TUCA, que foi aberta por um funcionário. Lá tinha um banheiro, e a gente pôde jogar uma água no rosto, para não sufocar, tamanha foi a quantidade de bombas que jogaram pelas janelas externas.

As reuniões de preparação da Liga… As preparações eram no próprio movimento, assembleia quase permanente, de Maio a Agosto, com tanta frequência que eu quase não ia às aulas, entre reuniões e assembleias… As preparações eram bem públicas, pelo que me lembro, já se votavam as coisas na assembleia, e nisso a briga entre as organizações: Refazendo sempre puxando para trás, com medo, evitando provocar a ditadura, e éramos nós, junto do Liberdade e Luta (da OSI, Lambertista), empurrando pra frente, porém, esses últimos capitalizaram mais, pois nós estávamos muito enfraquecidos, devido à falta de quadros após as prisões. Era todo mundo muito tímido, não tínhamos oradores, éramos militantes muito novos que sobramos ali. O que a gente preparava mais na LO eram as questões de segurança, como atuar se fosse preso, não carregar documentos, tempo limite de atraso em reuniões. Porém, tinha um clima de liberdade maior quando estávamos fazendo faixas e cartazes nos horários de aula. Participei de muitas reuniões da tendência estudantil da LO na PUC, que se chamava Proposta. Também fomos fazer reuniões em São Carlos… A preparação maior era dentro da tendência, fazendo análises de conjuntura, onde a gente percebia um enfraquecimento da ditadura, e de que precisávamos avançar com propostas mais combativas, sair para as ruas.

 

CS:      Você participou do histórico ato do largo da São Francisco? Quais suas lembranças do clima daquela manifestação? e da cidade? E qual foi a avaliação que fizeram na sua célula?

CB: Sim, participei. Houve uma grande repressão, onde a polícia cercou o ato e jogava jatos de água com tinta, de um caminhão, que chamava de “brucutu”, para marcar os que conseguissem fugir e pegá-los depois. Eu e uma amiga, Sueli, da Letras, ficamos encurraladas na Igreja de Santo Antônio, ao lado da Faculdade de Direito. Os padres abriram a porta e depois fecharam, e disseram para a polícia que “na casa de Deus não entra a polícia”, e depois, tarde da noite, conseguimos sair. Não lembro da avaliação de célula.

 

CS: Qual a importância dessas lutas para a luta contra a ditadura?

CB: Importância total. O movimento estudantil, desatado a partir dessas prisões, foi o que abriu as portas para entrar, no ano seguinte, 1978, o movimento operário, e daí tudo o que isso significou: entram as greves do ABC, em São Paulo, no interior do estado de São Paulo, no Rio de Janeiro, e pelo Brasil a fora. Então, começa um movimento operário.  Houve um refluxo do movimento estudantil, a partir da invasão da PUC, considerada uma “porralouquice”. Uma provocação que a ditadura não poderia ignorar, fazer um ato para tirar sarro da ditadura, pois durante o dia, tinha se fundado a UNE, às portas fechadas, após várias tentativas frustradas. E aí, o ato na PUC foi para esfregar na cara da ditadura o nosso sucesso. Depois, foi considerada uma provocação e o movimento estudantil teve um refluxo nas ruas, mas aí nesse tempo tem o movimento operário e reorganização de DCEs e centros acadêmicos, mas cessaram os enfrentamentos quase diários nas ruas entre estudantes e forças de repressão. Porém, há de se notar que apesar das idas e vindas, o movimento operário não parou, e aí tem a formação do PT, da CUT. Tudo isso só foi possível com a entrada do movimento estudantil.

 

CS: Para você, como foi o processo de construção da Convergência Socialista?

CB: Primeiro houve a mudança do nome de LO para PST, tal qual o nome na Argentina, da corrente Morenista. Em geral, já se chamava PST, tal como os nomes dos partidos dessa corrente da QI. Teve um congresso, em 1978…. A discussão que se fazia no partido, no contexto de Geisel e sua “Abertura Lenta e Gradual”, com partidos que eles aprovassem, em um regime de democracia cênica, controlada, e no tempo que eles considerassem. Não havia mais como a ditadura militar se manter apenas pela repressão. A partir dessa análise, víamos que era hora de furar mais isso, abrir mais espaço dentro dessa fissura aberta pelo regime. Daí vem essa discussão de formar um partido socialista.

O Jorge Pinheiro tinha chegado de Portugal, onde ocorreu a Revolução dos Cravos, e veio com essa ideia, que já era discutida na Espanha onde chamavam de Convergência Socialista. Tal discussão reverberou no PST, que ainda era clandestino, mas menos preocupado com a segurança. E aí chamou o movimento da Convergência Socialista, buscando juntar todos os intelectuais e organizações que se colocavam como socialistas, na época. Começamos a fazer reuniões aberta, ainda que clandestinas para chamar as pessoas e os simpatizantes à CS, porém acabou que só o próprio PST frequentava as reuniões. Com o tempo, não víamos mais sentido em tentar manter os núcleos da CS e o PST separados enquanto organizações. Foi um processo muito rápido. Fazia-se também uma discussão de proletarização da organização.

 

CS: Pode nos contar o que ficou em sua lembrança das prisões da direção da organização e de Moreno em 1978?

CB: Fui presa no dia 22/08/1978. Eu dividia uma casa, clandestina, com o Waldo.

Aluguei a casa a pedido do partido pois era uma das únicas da célula de estudantes que não morava com a família. O Bernardo Cerdeira veio do Rio, como clandestino, em setembro de 1977. Era um local na Vila Madalena, antes do bairro se tornar o centro da boemia. O Bernardo depois foi para o ABC, e o Waldo chegou, e passamos a dividir. Uma noite, após a convenção de formação da CS, o Waldo não voltou, e isso não podia, pois nesse caso, como estabelecido pelas medidas de segurança, não podia não voltar pra casa sem dar um jeito de avisar. Imaginei que a quebra de segurança foi porque ele foi pra casa com uma moça que ele estava paquerando. Na segunda-feira, ele também não tinha voltado. Voltando de Guarulhos, onde eu estava formando um núcleo da CS, no caminho de casa, perto de uma escadaria, vi dois sujeitos que pareciam ser policiais dentro de um fusca, e entrei pra casa. Waldo novamente não estava. Não saí da casa pois não tinha como. Teria que ir a pé até outra rua e depois pegar um táxi para ir pra casa da minha irmã, e seria pega no caminho. Na manhã seguinte, quando estava me arrumando para ir trabalhar, dois caras do DOI-CODI me levaram, ficaram dando voltas, parando na frente de terrenos baldios, achei que iam me matar. Até que me levaram para o DOPS e senti alívio, pois estava sendo “apenas” presa. Depois eu soube, que o Waldo e a Zezé tinham sido presos no saguão do hotel onde estavam o Moreno e a Rita. Foi uma porralouquice total trazer eles para a convenção da CS. Eles foram presos também.

No DOPS, tivemos nossos pertences revistados e houve um interrogatório de 2h. Pedi para ir ao banheiro, e tive de ir ao outro extremo do prédio, e no caminho, só ia vendo militantes… Fiquei numa cela, e éramos 8 mulheres, e os homens ficaram em outra. Pegaram todos os membros do Comitê Central. Me interrogaram várias vezes porque queriam que eu dissesse que conhecia a Rita. Nossa orientação era negar ser do PST, e dizer que éramos da Convergência, que era um chamado público. Foi o que dissemos aos agentes. Sobre a Rita, me interrogavam muito para poder nos incriminar com essa relação internacional. Em um momento, colocaram o Moreno na mesma sala comigo e o Romeu Tuma, e esse último fazia o papel do “delegado bonzinho”. Colocaram eles na mesma sala que eu, e o Moreno disse “faça o que sua consciência lhe mandar, mas conseguimos que a Anistia Internacional interceda, mas precisamos esclarecer todos os pontos”. Entendi que isso era a instrução para dizer o que o partido nos orientou, e negar envolvimento com o PST. Caracterizamos que não haveria tortura, pois a ditadura militar não tinha mais condições de manter pessoas presas durante meses, incomunicáveis. Não houve tortura física, mas fomos levados para salas escuras onde gritavam conosco e os equipamentos de tortura estavam à vista. Estivemos corretos ao caracterizar que não haveria tortura. No domingo seguinte à prisão, foram obrigados a cortar a incomunicabilidade. Fizemos greve de fome para conseguir isso. Recebemos parentes e advogados. Do lado de fora do DOPS, tinha uma manifestação de 5 mil pessoas do Movimento Panelas Vazias, que a igreja organizava, como manifestações contra a carestia nos bairros, e dessa vez tinham ido até a Sé. Isso foi no contexto do arrocho salarial. O movimento estudantil viabilizou que tanto o movimento operário quanto os movimentos sociais saíssem dos bairros e avançassem nas lutas.

Moreno correu um grande risco de ser extraditado para a Argentina e ser morto lá. As mobilizações estudantis e sociais do lado de fora, a solidariedade das pessoas que nos doavam comida e agasalhos, a greve de fome que fizemos, fizeram com que a Anistia Internacional e a OAB Nacional entrassem em cena e conseguissem a quebra da incomunicabilidade e a não-extradição de Rita e Moreno para a Argentina, e em vez disso, seriam enviados de volta para a Colômbia e lá ficariam proibidos de retornar ao Brasil por 10 anos. Tal proibição foi extinta mais tarde e ele pôde retornar nos anos 80. Eu saí uma semana depois, mas ainda tendo de responder a um processo sob a Lei de Segurança Nacional, que poderia resultar em prisão mais tarde, mas o Comitê Central foi encaminhado para diversos presídios. Zezé, por exemplo, ficou no Carandiru, com Elza, do PCdoB. Zé Maria foi um dos poucos do Comitê Central que não foi encaminhado a um presídio.

 

CS: O que poderia nos relatar dos debates para construir um partido socialista e depois um PT naquela época?

CB: Em paralelo à questão das prisões, estávamos em período eleitoral, e onde podíamos, tentávamos construir um Polo Operário Socialista do MDB, pois não tínhamos condições de construir o partido socialista. Usamos tal Polo como tática de construção de tal partido. Em São Paulo, como candidato a deputado federal tivemos o Benedito Marcílio, presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André, e tivemos o Jaú, um advogado que havia se aproximando da CS, porém filiado ao MDB. Com nossa saída da prisão, com exceção dos que eram do Comitê Central que continuaram presos, fomos com tudo para o processo de proletarização e para a campanha eleitoral.

Fazíamos os panfletos agitando um partido socialista, explicando aos trabalhadores que era um partido de trabalhadores, sem patrões… Marcílio era contrário a falar de “socialistas” preferindo usar o termo “trabalhadores”. Houve bastante diálogo com a classe nesse momento, no qual eu abri a regional de Guarulhos, o segundo maior trabalho operário que tínhamos, algo viabilizado pelo momento da campanha eleitoral. Com o tempo, mudamos para “Partido dos Trabalhadores”.

A discussão interna, onde deixamos de chamar de Partido Socialista para chamar de Partido dos Trabalhadores, foi no final do ano, com a libertação dos dirigentes do Comitê Central. Em janeiro, já havia a discussão com militantes, inclusive Lula e outros sindicalistas, e após uma discussão em um congresso em Lins, em 1979, o Zé Maria, enquanto CS, apresentou uma resolução propondo chamar à formação de um Partido dos Trabalhadores.

 

CS: Poderia nos dizer como funcionava a organização? A atuação com o jornal? As campanhas internacionais e de finanças?

CB: Todo final do ano fazíamos campanhas financeiras. Com a Internacional, a gente trabalhava muito com a Revista de América, vendendo ela. Trabalhávamos com o jornal Versus, que teve durante um tempo um suplemento chamado Convergência Socialista o “Vermelhinho” como ficou conhecido nas greves de 78. Mas depois passou a ser somente “Convergência Socialista”. Também tínhamos folhetos de formação.

 

O jornal era quinzenal, depois semanal, a depender do grau de mobilização na sociedade. Eram distribuídos entre os militantes, e cada um tinha sua cota para vender, o que era mais fácil nos períodos de mobilização, pois as vendas aconteciam rápido, nas ruas.

O Versus, nós começamos vendendo em portas de cinemas. Também havia as cotizações, de 10% sobre os ganhos dos militantes, como regra geral, além das campanhas financeiras, sejam para cá, ou para a Internacional, como por exemplo, acerca dos massacres de Sabra e Chatila, relacionadas à causa palestina, e a Revolução na Nicarágua, a Revolução Iraniana…

 

CS: Em sua opinião qual a importância da Liga e da CS para a história das lutas de nosso país.

CB: Total. A audácia da Liga em formar a CS, mesmo com os riscos que tomamos, foi importante nosso trabalho no movimento estudantil, nas massas, foi fundamental para os eventos que aconteceram depois no Brasil. Podemos dizer que aquele minúsculo grupo, com as prisões que sofreu, com sua política, mudou a história nacional, pois sem a Liga Operária, a história seria outra, pois nenhum outro grupo assumiria o nosso papel. As direções dos movimentos na época, (Refazendo, PCB, PCdoB) seja pelos assassinatos, exílios e prisões sofridas, seja pela busca de uma burguesia progressista no MDB, ou por outra razão, não teriam dado a mesma disputa e enfrentamento que a Liga e a CS deram. O Trotskismo foi importantíssimo, e aqui incluo também o Liberdade e Luta, mas sem essa análise e audácia e apuração perante a realidade, talvez não tivessem acontecido as condições para a posterior criação do PT, que foi fundamental, em que pese o papel que viria a cumprir posteriormente. Toda a década de 80 foi marcada por esses acertos e essa presença, mesmo que não tivéssemos conseguido capitalizar naquele momento em cima disso.  A Convergência pôde capitalizar e cresceu bastante.

Mas aí é outro episódio, o que aconteceu posteriormente, que se liga diretamente ao que aconteceu internacionalmente.

 

****

Leia a segunda parte da entrevista:

“Na cela, a Zezé nos contava histórias do Chile, e sobre as músicas populares de lá, além de canções da Guerra Civil Espanhola”

Acima, a jovem Célia Barbosa, presa política da nefasta ditadura militar brasileira. Como se pode notar, o número de detenção está escrito à mão, em um papel comum. Célia nos contou que, neste dia, foram tantas prisões que acabaram as tabuletas do DOPS. A masmorra estavam tão cheias que ela foi levada para o Batalhão Tobias de Aguiar, na avenida Tiradentes.

 

Entrevista com Celia Barbosa, militante da Liga Operária (Parte II)

 

Após o ato em homenagem à memória de Maria José Lourenço, a Zezé, entrevistamos Célia Barbosa. Companheira é independente e foi uma das responsáveis pela coordenação e organização do evento que ocorreu na sede da CSP-CONLUTAS em São Paulo.

Célia vem de uma família proletária e, muito cedo, começou a se radicalizar politicamente no contexto da ditadura militar, ingressando no movimento estudantil da USP no final dos anos 1970. Lá, entrou para a Liga Operária, organização na qual exerceu funções de direção no setor estudantil. Atuou na Convergência Socialista, no trabalho operário em Guarulhos, e posteriormente na organização da oposição gráfica em São Paulo.

A entrevista ocorreu em dois momentos. Aqui você pode ler a segunda parte, onde aprofundamos alguns pontos das respostas iniciais. Agradecemos à companheira pela disponibilidade e por dedicar parte de seu tempo a essa longa conversa.

Atualmente, Célia Barbosa e outras camaradas que militaram na Liga Operária estão empenhadas na edição de um livro sobre a organização, reunindo depoimentos de muitas e muitos que participaram daquelas batalhas.

 

Boa leitura!

 

Combate Socialista: Qual era o nome da tendência estudantil da USP e do Jornal? Agrupava estudantes de quais cursos?

Célia Barbosa: O nome da tendência na USP era Mobilização Estudantil. Tinha gente das Ciências Sociais, da História, da Geografia, da Física, da Química, da Letras, da ECA.

 

CS: Como foi a organização dessa famosa assembleia com os operários da Liga? Podes relatar mais sua lembrança da assembleia? Como foi a reunião da tendência após essa assembleia?

 

CB: Essa assembleia com os operários da Liga… Agora que escrevemos o livro fizemos entrevistas, então tivemos como saber melhor, porque ninguém sabia direito. O Waldo  trouxe do ABC, o Pacheco, que era dos químicos, e um metalúrgico de codinome Jeferson, e os levou para a USP para fazer a denúncia. Antes disso ou enquanto isso, o Valfrido, que já tinha saído da História, mas ainda tinha influência no Centro Acadêmico, convenceu o Geraldinho, dirigente da Refazendo e do Centro Acadêmico e do DCE reconstruído (a força majoritária do DCE) a chamar a assembleia e que levaríamos os operários. Sei que teve uma primeira assembleia de tarde, no auditório da História, mas o que foi grande mesmo, onde estiveram os operários, foi à noite. Era como se fazia antes, os ativistas e centros acadêmicos passavam em sala de aula chamando todo mundo pra assembleia. A Ciências Sociais foi em peso, tal como a História e Geografia, e a assembleia aconteceu no pátio interno do prédio da História e Geografai, conhecido como vão, na FFLCH. O que eu lembro da assembleia é que tinha um silêncio total, escutando os operários falando que seus companheiros tinham sido presos panfletando e conversando sobre o Primeiro de Maio. Essa assembleia marcou o ato de protesto para o dia 5 de Maio.

 

CS: Poderia nos contar mais esse dia tão feliz pra você? Como foi que se deu essa captação? O que se falou na reunião? Que medidas de segurança se tomou?

CB: Meu companheiro de faculdade, Roberto, veio falar comigo na saída da faculdade, sobre a tendência Mobilização Estudantil, que era um braço legal da Liga Operária dentro do contexto do movimento estudantil. Me explicou o que era a LO e me perguntou se eu queria entrar. Aquilo foi uma alegria imensa e eu disse que sim, e ele marcou a próxima reunião, bem como as instruções de segurança (tolerância máxima para atrasos, entrar por diferentes acessos, “disfarçar” para que todos não entrassem no mesmo momento no local da reunião), e que se excedesse a tolerância do atraso, todos levantavam e iam embora. Fui tão feliz pra casa que nem dormi naquela noite, por saber que faria parte de algo que sempre quis, mas que não sabia que existia. Após a primeira reunião, perguntei se podia chamar minha amiga Suely, e isso foi aprovado.

 

CS: Havia documentos internos com essas caracterizações? O debate de possíveis dúvidas ou possíveis divergências era livre? Como os jornais e documentos chegavam até a sua célula?

CB: Sim, havia circulares, que tinham que ser rasgadas após a leitura e vinham com os dirigentes das células em um esquema clandestino. No primeiro momento, tínhamos informes orais, mas em 1978 passamos a ter documentos que destruíamos depois.

O debate era livre, e depois de votar seguíamos a decisão votada. Houveram já divergências em debates. Um dos casos foi sobre o General Euler Bentes. Havia uma divergência sobre procurar o Euler Bentes, que já estava em diálogo com Júlio Tavares e dois deputados da esquerda do MDB, que compunham a CS. O general era considerado uma dissidência dos militares e era apoiado pelo MDB. No final, não o apoiamos.

 

Os jornais e documentos chegavam de maneiras diferentes. Uma forma era usando latas de talco, sem a parte de dentro. O jornal se chamava “Independência Operária”, que era passado aos militantes e para contatos que estávamos tentando captar.

 

CS:  Explique melhor esse processo de se tornar dirigente da célula? Como fazias o contato com o centro da organização? Onde ocorriam as reuniões?

CB: Esse era um processo votado. Quando eu entrei, o dirigente eram Roberto, o Antônio Carlos Moreira, que era conhecido como “Rascunho de Lênin”. Algumas semanas após minha entrada, o Roberto me disse que estava com alguns problemas e desapareceu da USP. Acho que por pressão da família, ou em função do medo por causa das prisões. Na minha célula, que era composta majoritariamente por alunos recém captados das Ciências Sociais, fui votada para a direção.

Sobre o contato com o centro da organização, fui orientada a fazer um curso em Petrópolis, mas o contato de vez, em que pese que eu tenha tido contato com o Waldo do Comitê Central, foi depois, na época da Convergência Socialista, quando se encontraram estudantes de todas as tendências estudantis, braços legais no meio estudantil, da Liga Operária. Havia uma ferramenta de segurança que era o não saber quem era da Liga Operária e quem era das tendências estudantis. Por exemplo, a Zezé, quando entrei na faculdade, estava na minha sala de primeiro ano, era uma das ativistas que chamavam mais atenção nas passagens em sala sobre o processo de reconstrução do DCE, e foi uma das que desapareceu durante as prisões, e depois fui saber que ela era uma das dirigentes.

Fazíamos muitas reuniões nos canteiros da USP, pois era fácil de nos escondermos entre os alunos fazendo seus piqueniques e estudando, tal como outros agrupamentos faziam. Era mais fácil ali do que em casa, pois em casa era mais difícil de esconder. Boa parte das reuniões era ali, algumas no centro acadêmico, outras disfarçadas de piquenique.

 

CS: Poderias contar melhor esse episódio de repressão na PUC? Você já sabia que haviam militantes da Liga na PUC? E ato de 1977, no largo de São Francisco, pela liberdade dos presos da Liga Operária?

CB: Aconteceu em Setembro de 1977, no contexto das mobilizações de maio a setembro daquele ano exigindo liberdade aos presos e liberdade de expressão e reunião (e com a Liberdade e Luta chamando “abaixo a ditadura”, o que se massificou depois). Íamos pouco às aulas devido ao volume de atividades de preparação dos atos e assembleias que tínhamos que realizar. Nesse contexto, começamos a tiragem de delegados para fundar a UNE. A ditadura reprimia e sabotava as tentativas de organizarmos o congresso. Houve um congresso feito com maior clandestinidade, sem ônibus alugados, divulgação, onde os delegados eleitos chegaram antes. No final desse congresso, foi chamado um ato na PUC, no TUCA, mas a polícia também ficou sabendo da ocorrência desse ato, e cercou o local com uma repressão pesada, contra as 5 mil pessoas que estavam no ato. Erasmo Dias, um fascista da maior marca e secretário de segurança, comandou a repressão, e começaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral. Uma companheira nossa acabou com um buraco na perna porque uma das bombas caiu nela, e tinha fósforo na composição. Com a repercussão dessa repressão, houve uma mudança de um setor da burguesia frente à ditadura.

Já sabia de militantes da LO na PUC. Nossa segurança falhou, inclusive uma vez encontrei um grupo de militantes da Proposta, tendência estudantil da LO na PUC, voltando do curso em Petrópolis, enquanto eu estava indo, dentro da rodoviária.

Esse do São Francisco, pela liberdade aos presos da LO, começou lá, e virou uma passeata. Não estava previsto que virasse uma passeata, pois ninguém fazia passeatas desde 1969, com o AI-5 e prisão dos dirigentes da UNE. Esse primeiro, em 1977, era pra ser só um ato no São Francisco e virou uma passeata que chegou até o Viaduto do Chá e lá foi impedido de prosseguir. Mas nesse dia eu não estava, pois estava no trabalho. Houveram outros atos depois. Eles ficaram 4 meses presos, mas depois dos atos pararam de sofrer torturas, e começaram a receber advogados. As consignas começaram a se confundir entre liberdade para esses presos políticos e liberdades democráticas.

 

CS: Poderias explicar melhor a articulação entre as tendências da USP, PUC e São Carlos?

CB: Após a UNE, começou o processo de formação das Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs), e começou o processo de formação de chapas para concorrer às eleições das UEEs, e começaram a se juntar os agrupamentos. Nem todos eram militantes da LO, ou foram chamados para participar, mas eram das tendências estudantis dirigidas por militantes da Liga e concordavam com os posicionamentos da mesma. A articulação ocorreu por volta do fim de 1977, início de 1978, e antes, em 1977 nos encontrávamos nas atividades.

 

CS: Fale mais das medidas de segurança da organização…

CB: Limite de tolerância ao atraso em 10 minutos, ou a reunião era cancelada e todos saiam, devido a possibilidade de alguém ser pego e entregar os nomes dos outros. Esconder os jornais e não passar nada em público. Não ter documentos em casa. Proibição de usar maconha e outras drogas, porque a polícia podia pegar e achar materiais do partido, ou usar como argumento para a prisão. Estanquização: um não sabia do outro, e com essa separação dos militantes em células diferentes, horários e locais diferentes, não havia como infiltrados identificarem todos.

 

CS: Poderias relatar como você viu essa mudança de Liga Operária para PST? Em sua lembrança como foram os debates internos do congresso?

CB: Foi uma discussão que se deu sobre o nome da organização, e nesse momento havia outra organização morenista na quarta internacional com esse nome, PST. Também consideramos chamar de “Partido” por já estarmos maiores, e ter o mesmo nome que as outras correntes tinham nessa fração. Foi uma discussão para o congresso anual. Acabou mudando para PST, mas após a prisões em 1978 nos tornamos a Convergência Socialista, pois reuníamos lá principalmente membros do PST.

 

CS: Na conformação da Convergência, houve debates com a velha geração que tinha sido do movimento trotskista nos anos 30 e 40 em SP?

CB: a “Velha Geração” estava fora do país. Todos éramos muito jovens, e o que se tinha contato era com os socialistas mais de centro, como Armínio Afonso. Mário Pedrosa, que tínhamos conhecido no Chile e a partir do qual de organizou o Ponto de Partida (mas ele não foi parte do Ponto de Partida), estava fora do país, pelo que me lembro. A maioria só voltou após a Anistia, em 1979. Desses nomes, não me lembro deles estarem no país na época.

 

CS: Poderias falar mais sobre o processo de proletarização?

CB: Houve uma discussão, no primeiro semestre de 1978, dos estudantes deixarem seus cursos e morarem em bairros operários e conseguirem empregos em fábricas. E tínhamos acabado de ganhar o centro acadêmico (CEUPES) junto da Liberdade e Luta, e começamos a sair dos cursos. Eu dizia que ia, mas queria ficar até o fim da gestão pois via como irresponsável sair e deixar o centro acadêmico vazio. Com as prisões, mudou tudo isso e eu não voltei. Me radicalizei, e tomei como tarefa derrubar a ditadura. O processo foi assim, os militantes saíam da faculdade e conseguiam emprego nas fábricas, eram “giros em 180 graus”, ousados, mas acabamos por não fincar raízes na USP e ficamos meio queimados no movimento estudantil por causa desse giro brusco. Também houve um refluxo no movimento estudantil após a Invasão da PUC, com as forças se voltando para a construção das chapas da UEE, com menos atos nas ruas, e isso contribuiu para nossa saída para as fábricas.

 

CS: Conte mais sobre sua prisão? Conseguiste falar com suas companheiras na prisão? O que você pensava enquanto estava na prisão?

CB: Senti que tinham prendido todos quando passei por aquele corredor. Os policiais pegaram tudo da minha casa e de bolsas, me interrogavam pra saber os nomes dos outros militantes, e ouvia gritos. No início tive bastante medo, mas uma vez que ficou claro que não iam torturar, eu tive mais coragem, menos medo.

As 9 mulheres ficaram todas na mesma cela. Então ficaram eu, Zezé, Hilda Machado, Esther Tenzer, Maura Veiga, Maria Cristina Salai, Maru (amiga da Ester e simpatizante da PUC), Ana Nogueira e Marta D’Ângelo, e por ficar na mesma cela conseguimos nos falar. Os homens ficaram em celas separadas, e para organizar a greve de fome com eles, precisamos da ajuda de um preso estrangeiro que estava sem documentos e trabalhava nos corredores, além de usar um buraquinho em uma parede pra tentarmos nos comunicar com a cela ao lado.

Conversávamos da nossa situação, cantávamos muito para passar o tempo e levantar o ânimo. Cantávamos alto para que os companheiros nos escutassem, porque a porta da cela era completamente fechada, exceto por uma portinhola. Na cela, a Zezé nos contava histórias do pré-golpe do Pinochet no Chile, e sobre as músicas populares de lá, além de canções das passeatas e da Guerra Civil Espanhola. Conversávamos da situação para levantar o ânimo. Cada vez que nos levavam para o interrogatório, às vezes 2 ou 3 vezes por dia, dávamos força, pois havia tortura psicológica (mesmo que não houvesse tortura física), humilhação, ameaças, e voltávamos de moral baixa, então falávamos para consolar. Foi um ambiente interessante, de muita camaradagem.

Pensava, lá dentro, que não era preciso dar tempo antes da saída do centro acadêmico antes de iniciar a proletarização, entrar no movimento operário, organizar os trabalhadores e derrubar a ditadura militar.

 

CS: Poderias dizer os nomes de todos os presos e presas de 1978?

CB: As 9 mulheres ficaram todas na mesma cela, então ficaram eu, Zezé (Maria José da Silva Lourenço, CC), Hilda Machado (CC), Esther Tenze, Maura Veiga, Maria Cristina Salai (CC), Maru (amiga da Ester e simpatizante da PUC), Ana Nogueira e Marta D’Ângelo. A Maru, que foi logo identificada como não militante, saiu logo, por isso me lembro sempre de 8 mulheres na cela. Os homens se chamavam Arnaldo Schreinner (CC), Waldo Mermelstein (CC), Edson Silva Coelho (Jarrão, CC), Bernardo Cerdeira (CC), José Aziz Creton (CC), Ronaldo de Almeida (CC), José Welmovick (CC), José Maria de Almeida, Oscar Itiro, Justino, Jean Carlos D’Agostini. Não sei se me esqueci de algum nome.

 

Mais tarde, Romildo e Júlio Tavares foram presos, após a soltura da base. As que não éramos da direção nacional, fomos soltas até uma semana depois das prisões, menos a Zezé, que sabiam que era dirigente. Entre os homens, foi o mesmo, talvez com alguns dias mais de diferença entre eles. Também prenderam Rita Strasberg, Moreno (Hugo Bressane) e Antônio Maria de Sá Leal, que vierem para a convenção de lançamento da CS.

 

CS: Conte mais dessa decisão coletiva de fazer a greve de fome na cela? Quais companheiras dividiram a cela contigo?

CB: Nós decidimos isso entre as mulheres, para quebrar a incomunicabilidade, durante 3 dias, e os demais aderiram após comunicarmos a eles. Com a mobilização estudantil e popular, a palavra de ordem “Libertem Nossos Presos” do Movimento Popular da Carestia, que faziam as Marchas da Panela Vazia, no contexto do rebaixamento brutal dos salários, organizando nos bairros pelos padres da Teologia da Libertação, os ativistas ligados a igreja católica e militantes de esquerda.

Foi uma semana de agitação e assembleias permanentes na USP e na PUC, pois tinham estudantes da USP e da PUC presos. Da USP tinha eu e a Maura, da Letras. Da PUC tinha a Maru, a Ester, das Ciências Sociais e a Maria Cristina, o Oscar, ambos da matemática. E era uma loucura, pois de fora, das assembleias e das pessoas vinham casacos, comida e guloseimas no meio da greve de fome. No sábado, interrompemos a greve de fome, com a quebra da incomunicabilidade e acesso a advogados. Teve um movimento da Anistia Internacional que foi importante, devido a Ruth Escobar, uma atriz e produtora teatral portuguesa, que se moveu em função do português que estava preso. Também houve uma movimentação da OAB, em função do Creton, pois o pai dele era desembargador no RJ e foi até o DOPS com membros da OAB, e víamos essas delegações nos corredores. Graças a essas movimentações, a greve de fome pode ser quebrada rápido.

 

CS: Como foi dividir a prisão com Zezé? Ela era a única dirigente nacional nessa cela?

CB: Ela era a mais velha de todas ali, a mais madura. Ela era uma dirigente que sempre foi bastante solidária, “mãezona”, que não nos deixava desanimar e nos dava confiança em nossas caracterizações sobre o movimento de massas e a ditadura militar, mesmo antes da incomunicabilidade ser quebrada.

Eu pude ouvir dos meus pais e de outras pessoas que em torno de 5000 pessoas foram da Praça da Sé até o DOPS exigir nossa libertação. A Zezé nos reforçava a confiança no movimento de massas. Ela era a única dirigente na cela, em que pese a Maura ter ocupado a direção estadual e ser uma grande oradora.

 

CS: Quando conseguiram visitas qual foi a sensação? Puderam comemorar juntas e juntos dentro da prisão de alguma forma?

CB: Ester saiu no sábado, quando quebrou a incomunicabilidade. A Hilda creio que também. Eu saí segunda ou terça de tarde. Mas, estávamos todos muito preocupados porque sabíamos que a Zezé não iam deixar sair. Por isso fizemos a greve de fome na PUC depois. Cada um que saía era uma sensação de vitória, especialmente com a Hilda.

 

CS: poderias falar mais do polo operário e socialista nas eleições? E dessa campanha eleitoral em Guarulhos? E sobre a sua militância operária nessa regional?

CB: Tinha a ver com a política de formar um Polo Operário Socialista, a partir da Convergência Socialista, saindo da configuração MDB e Arena, e criando um partido com independência de classe. Uma forma que tivemos de concretizar essa política foi buscar dentro do MDB, um saco de gatos onde havia de tudo, entre golpistas burgueses arrependidos, até intelectuais, ex membros do Partido Socialista, deputados de esquerda que apoiavam o movimento Convergência Socialista. Fomos buscar dentro do MDB operários, por isso buscamos que o Marcílio se filiasse como candidato do sindicalismo e dos trabalhadores em luta. Foi interessante, era uma forma de falar da formação do novo partido na campanha eleitoral. Em 1979, tivemos o movimento pela Anistia a Todos os Presos, e formação do PT em 1980.

A campanha eleitoral em Guarulhos era para isso. Já estava inserida lá. Isso volta à discussão da proletarização antes da prisão. No início de 1979 consegui uma casa em um bairro operário, depois consegui um emprego em uma fábrica de lâmpadas. Guarulhos era uma grande periferia do Estado de São Paulo, a segunda maior cidade de SP, onde se localizavam as fábricas de autopeças para suprir as indústrias automobilísticas do ABC.

Foi uma experiência interessante com a classe operária e com a indústria de SP. Com esse trabalho da campanha eleitoral, chamado voto e construção de um novo partido, um Partido de Trabalhadores, aproximamos muitos operários, secundaristas e universitários da Faculdade Farias Brito, e logo conseguimos 30 militantes, e depois mais. Foi um trabalho interessante. Eu trabalhava no controle de qualidade da fábrica de lâmpadas, usadas em automóveis, aviões e árvores de Natal. Em 1979, houve uma greve, e fui eleita delegada sindical.

 

CS: Como foi a campanha por Nicarágua? Em plena ditadura como conseguiam fazer essa campanha pela revolução nicaraguense?

 

CB: Discutíamos muito sobre essa pauta e levávamos para as discussões das assembleias no sindicato. Fazíamos campanha com toda a vanguarda reunida na Casa de Cultura Paulo Pontes, onde também fizemos as primeiras reuniões do PT. Em todo lado, os jornais falavam sobre a questão da Nicarágua, e falávamos da Brigada Simón Bolívar. Após a vitória da revolução nicaraguense, tivemos bastante problema, pois se falava que era um governo que trairia a revolução, e depois houve a expulsão da Brigada Simón Bolívar, que levou a ruptura definitiva com o Secretariado Unificado da Quarta Internacional (dirigidas por organizações ligadas a Ernest Mandel), e a fração que compomos se tornou uma nova internacional. Nós perdemos militantes operários importantes devido a essa discussão, por discordarem da forma que tratamos a questão.

 

CS: Poderias explicar melhor a diferença da Liga com Caminhando e Refazendo? E com a Libelu?

CB: o Caminhando era o PCdoB, e junto com o Refazendo, eram sempre recuados devido a uma caracterização de que a situação necessitava de cautela, mas ainda assim capitalizavam devido ao tamanho que tinham e ao bom diálogo. E é natural que na massa houvesse mais receio, nós que éramos mais audazes, e na prática nossas caracterizações se provaram reais. Eles seguravam o máximo. Me lembro de uma grande dirigente do Refazendo, Vera Paiva, filha do Rubens Paiva, que era uma grande oradora, do curso de psicologia. Tinha o Geraldinho, da Historia se não me engano. Quando houve o movimento da Anistia, especificamente entre 1978 e 1979, se fazem os Comitês pela Anistia, e me lembro dela falando nesses comitês “esses comitês não são sovietes, vocês estão delirando”. Eram reformistas, no Caminhando (se consideravam maoístas) e o Refazendo, da Ação Popular Marxista Leninista, vindo da juventude católica (JUC), chamávamos de centrista. A Libelu era o contrário, pois agitavam caracterizações mais avançadas, mas chamavam todos de reformistas por não agitar “Abaixo a Ditadura” em 1977, o que acreditávamos não ter sido alcançado pela consciência da massa estudantil ou da vanguarda, em tal nível, naquele momento. Era algo propagandístico. Tudo aconteceu bastante rápido, a partir da grande repressão e prisões em maio de 1977, que abrem as portas para o movimento estudantil e depois operário, e aí chegou ao ponto dessa palavra de ordem estar na frente de todas as passeatas e estampadas em jornais, se tornar uma tarefa para já. Sempre achei eles um bando de pequenos burgueses, e depois foram trabalhar na Folha de São Paulo.