Chile: triunfo do “Não”, um balanço da derrota e como acreditamos que a luta deve continuar

Por MST, seção chilena da UIT-CI

05/09/2022

A maioria do país (62%) decidiu rejeitar a nova proposta constitucional, contra apenas 37% que votaram a favor. Um resultado que abateu um amplo setor de companheires, companheiras e companheiros, que tem agrupado os melhores lutadores da rebelião popular de 2019 até hoje. A confusão reina, porque não há dúvida de que ontem venceram os grandes empresários, a direita e os pinochetistas mais fanáticos. Entendemos e compartilhamos a decepção de centenas de milhares de pessoas.

Hoje, há uma tarefa fundamental: entender o que aconteceu, os reais motivos da derrota e quais serão suas consequências para o povo e a classe trabalhadora. A velha e desastrosa tradição de culpar o povo por ser “ignorante e fascista” não nos serve. Agora, mais do que nunca, devemos nos fortalecer com as conclusões corretas para retomar a luta, algo ainda urgente.

As verdadeiras razões da derrota eleitoral

Parece absolutamente contraditório que as mesmas pessoas que protagonizaram uma das rebeliões populares mais importantes dos últimos tempos, que votaram com 80% para mudar a Constituição, que elegeram uma maioria de candidatos “independentes” para a Assembleia agora usem sua força para rejeitar a mudança constitucional. Mas não é.

Essa derrota começou a se concretizar em 15 de novembro de 2019, quando a direita, a ex-Concertação [1] e a Frente Ampla assinaram o Acordo de Paz para salvar o governo Piñera e desviar a força da mobilização para o caminho institucional de um processo constituinte absolutamente condicionado pelo empresariado, de modo que não fosse nem livre nem soberano. Não só isso. Esse acordo criou as bases para que fossem atacados os mais combativos ativistas das mobilizações, transformando-os em presos/as políticos/as, ou reprimindo-os brutalmente. Tudo isso garantindo aos Carabineiros a impunidade para essa tarefa. E assim segue até hoje.

Com 80% de aprovação no primeiro plebiscito, e com maioria de votos para os “independentes”, a classe trabalhadora e o povo pensaram que seria formada uma instituição que se oporia aos corruptos de sempre, mas isso não aconteceu. Por isso, veio a decepção e a ruptura de milhões com o processo constituinte. A Assembleia Constitucional permitiu que Piñera governasse com tranquilidade. Não fez nada para lidar com a perda de empregos e o crescimento da pobreza. Não fez nada pelos/as presos/as políticos/as ou contra os militares e policiais que reprimiram. Foi mais um parlamento, afastado das demandas imediatas daqueles que protagonizaram a rebelião popular, como queriam a direita, a ex-Concertação e os que hoje compõem o governo.

Nessa mesma Assembleia Constitucional, e nos bastidores, a maioria dos “independentes” cedeu o controle aos partidos tradicionais, que deixaram de fora do novo texto constitucional demandas tão importantes como a nacionalização dos recursos naturais. Entre embates e manobras, nasceu a nova Constituição que, embora com avanços democráticos, deixou intacto o modelo econômico, responsável pela profunda desigualdade vigente no país. Por isso, a aprovação popular à nova proposta se manifestou nas pesquisas, mas ela não despertou o engajamento operário e popular. E a confusão se espalhou diante de uma proposta que não atendeu às principais demandas pelas quais saímos às ruas.

Além disso, outra frustração preparou o terreno para ontem. O novo governo, com o Partido Comunista e a Frente Ampla à frente, tem sido uma grande decepção para milhões. Diante da profunda crise econômica enfrentada por milhões de famílias trabalhadoras, Boric e seu governo não adotaram as medidas mais básicas para evitar o desastre. Não fizeram nada contra a inflação. Não fizeram nada contra os salários miseráveis. Se negaram a prestar qualquer auxílio direto do Estado e deixaram intactos os lucros dos grandes empresários. O que eles entregaram, a “mão na massa”, foi a repressão contra o povo mapuche e chileno, e intermináveis ​​promessas vazias. Foi por isso que milhões usaram o voto do plebiscito para punir o governo.

Ainda mais criminosas foram suas ações na campanha. Enquanto milhares tentavam enfrentar, com escassos recursos, o “Não” pinochetista, Boric e seus partidários firmavam aceleradamente um acordo para reformar a nova Constituição em benefício dos empresários. Eles negociaram descaradamente e publicamente a nova Constituição com o “Não”, argumentando que tinha que ser feita uma “Constituição de todos”.

Desnecessário dizer que as direções das principais organizações sindicais, estudantis e populares do país, controladas por esses mesmos partidos, têm desempenhado um papel desastroso no aumento da desilusão. A CUT, que nada fez pelas famílias trabalhadoras nestes tempos difíceis, a Associação de Professores, que se limita apenas a palavras educadas para exigir reivindicações, a CONFECH, ausente há anos e agora totalmente submissa ao novo governo mesmo contra os estudantes, mal fizeram campanha. Perguntamos: quantos atos e atividades essas organizações têm convocado com trabalhadores/as, com estudantes?

A campanha da direita e do “Não”, o veneno da mentira e do medo, ocupou com facilidade as brechas da desilusão abertas pelos que dirigem hoje o governo, que lideraram o “Sim”, negociaram com a direita na Assembleia e durante a rebelião popular salvaram Piñera. Esta é a sua derrota. Milhões de trabalhadores/as, estudantes, mulheres, dissidentes e irmãs e irmãos dos povos originários votaram expressando essa confusão. Ou punindo diretamente as meias medidas e as mentiras deste governo que prometeu mudar as coisas.

Vale, no entanto, acrescentar outro ponto não menos importante. Aprovo a Dignidade [1] e os velhos partidos conseguiram conduzir todo o processo político até hoje, porque não conseguimos construir uma alternativa política para os milhões que lutaram durante a rebelião popular. Uma alternativa que lute contra a inflação e os salários miseráveis e pelas reivindicações mais candentes da classe trabalhadora e do povo. Ela nos permitiria (na época) enfrentar as manobras e as enganações na Assembleia, além de ter garantido a vitória do “Sim” contra a Constituição de Pinochet. Sem essa direção, como ficou claro, todos os esforços podem ser em vão.

Usarão essa derrota para continuar atacando o povo e a classe trabalhadora

Hoje, o triunfo do “Não” permite a continuidade do giro à direita do governo, que já construiu todas as pontes com os líderes do pinochetismo. Tal giro tem sido feito ao não se tocar em Piñera ou nos oficiais que impuseram o terror contra a rebelião popular, militarizando Wallmapu e reprimindo as mobilizações. E, sobretudo, com o compromisso com um acordo nacional para construir a “Constituição de todos”. Esse foi, é e será o governo de Boric, do PC e da FA.

Assim que venceram, e em meio a pequenas comemorações que não emocionaram seus próprios eleitores, os líderes do “Não” correram para aceitar a proposta feita por Boric. Ambos os lados concordaram há muito tempo, de costas para o povo, que qualquer que fosse a opção vencedora, deveria levar a um novo caminho de reforma, mas agora inteiramente controlado pelo parlamento corrupto.

Um novo processo constituinte, prometeu Boric. Temos que fazer mudanças na Constituição dos anos 80, respondeu a direita. Ambos os lados sabem que precisam continuar alimentando a esperança de que mudanças “responsáveis” só podem ser realizadas por eles mesmos, trancados no Congresso. E para isso propõem instalar um cenário de reformas que tranquilize milhões de famílias trabalhadoras, que veem seu padrão de vida cair diariamente, em decorrência da crise econômica. Cresce o terreno fértil para o descontentamento social, e eles não esqueceram disso mesmo com o triunfo conjuntural do “Não”.

Seja qual for o nome, o que eles querem é um novo acordo nacional para liquidar qualquer vestígio da rebelião popular de 2019 e continuar descarregando o peso da crise econômica nas costas dos/as trabalhadores/as. Por isso, é urgente tirar conclusões sobre a derrota do “Sim” no 4 de setembro e organizar nossas fileiras para enfrentar os novos ataques do governo e seus aliados da oposição de direita.

Devemos enfrentar todos

Então, por que era importante vencer o “Sim”? Porque o triunfo do “Não” fortaleceria, como ocorreu, os setores mais reacionários do país. Foi assim que milhares de nós entendemos, participando dos principais atos ou impulsionando a campanha com nossa própria força. Aqueles de nós que não só buscaram o voto, denunciaram as manobras do governo Boric, convocaram a mobilização contra a inflação e os salários miseráveis e se solidarizaram ativamente com todas as lutas.

Por isso, é essencial fortalecer aquela unidade que existiu entre nós que promovemos a luta contra o pinochetismo e o “Não” nas ruas. A vitória eleitoral deles significará mais sofrimento para milhões de famílias trabalhadoras. Isso porque eles nos obrigarão a pagar o custo da crise econômica, enquanto os ricos estão cada dia mais ricos.

Precisamos nos reagrupar, unificar as lutas, abrir diálogos fraternos, agir juntos contra todos aqueles que querem usar o triunfo do “Não” para continuar atacando a classe trabalhadora e o povo. Tempos virão para lamentar a recente derrota. Hoje, é o momento de retomar os caminhos abertos pela rebelião popular de 2019.

Por um plano de luta nacional de combate à inflação e aos salários de fome!

Contra a militarização de Wallmapu e a repressão! Pela liberdade de nossos/as presos/as!

Contra as negociações entre o “Não” e o governo Boric para impor um falso processo constituinte, controlado pelos corruptos de sempre!

Unir-nos na luta, retomar as ruas, construir juntos uma alternativa política dos/as lutadores/as!

Que os/as trabalhadores/as e os povos do Chile e do mundo governem!

Comitê Executivo do MST

 

[1] Concertación de Partidos por la Democracia (Coalizão de Partidos pela Democracia), conhecida popularmente como Concertación, foi uma coalizão eleitoral, formada em 02 de fevereiro de 1988, composta por Partido Democrata Cristão (PDC), Partido pela Democracia (PPD), Partido Radical Social-Democrata (PRSD) e Partido Socialista (PS). Governou o Chile de 1990 a 2010. Foi extinta em 2010 (Nota do tradutor).

 

[2] Apruebo Dignidad: coalizão política, formada em 11 de janeiro de 2021, composta pela Frente Ampla (Convergência Social, Revolução Democrática e Comuns) e por Chile Digno, Verde e Soberano (Partido Comunista, Federação Regional Verde Social e Ação Humanista). Elegeu, em dezembro de 2021, o atual presidente chileno, Gabriel Boric (Nota do tradutor).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *