Milhares se despediram dele: reflexões sobre José “Pepe” Mujica

Por Juan Carlos Giordano, deputado nacional eleito pela Izquierda Socialista/ FIT-U
O ex-presidente uruguaio José Mujica faleceu no dia 13 de maio, aos 89 anos. Sua morte foi lamentada por dezenas de milhares de pessoas em sua terra natal. “O guerreiro tem o direito de descansar”, disse ele enquanto o câncer progredia. Diante de sua morte, que lamentamos, surgem inúmeras perguntas, principalmente entre as novas gerações de lutadores/as, que se perguntam o que há por trás desse ex-guerrilheiro de pés no chão, que acabou sendo “o presidente mais pobre do mundo”; viveu uma vida austera, cultivando a terra numa chácara nos arredores de Montevidéu; dirigiu um velho Fusca azul-claro; foi de scooter até a Casa do Governo; e pediu para ser enterrado ao lado das cinzas de sua cadela Manuela.
Mujica sempre chamou a atenção, gerando grande simpatia popular, por ser um político que, como deputado, senador e depois presidente, não vivia no luxo típico dos políticos patronais corruptos, que enriquecem às custas do povo trabalhador.
Nós, da esquerda trotskista, respeitamos e compreendemos aqueles que simpatizam com a figura de “Pepe” Mujica. Ao mesmo tempo, expressamos nossas diferenças. Mujica fez parte, após a queda do stalinismo e do Muro de Berlim em 1989, da esquerda conhecida como neo-reformista, que postula que o socialismo não é mais um objetivo de mudança social. Tal esquerda defende a política do “possível” e resgata a antiga concepção da conciliação de classes. Em outras palavras, é uma esquerda que, em nome da classe trabalhadora, acredita que deve governar – e faz isso – com a burguesia, e não romper com o capitalismo, os bancos e as multinacionais.
Mujica fez parte dos governos latino-americanos de duplo discurso, junto com Evo Morales na Bolívia, Lula no Brasil, Bachelet no Chile, Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, Correa no Equador, Chávez e Maduro na Venezuela, entre outros. Governos que, com retórica “progressista”, sustentaram os pilares do sistema capitalista, pagaram a dívida externa e submeteram-se aos bancos, às multinacionais e aos ditames do imperialismo. E implementaram severas medidas de ajuste, usando o falso argumento de que estavam “redistribuindo a riqueza” e “combatendo a direita”.
Sobre a Frente Ampla
Mujica chegou à presidência com a Frente Ampla em 2010-2015. Ele sucedeu Tabaré Vázquez, de quem havia sido ministro. Na década de 1960, foi membro do Movimento Guerrilheiro de Libertação Nacional (MLN) – Tupamaros. Depois de cumprir 15 anos de prisão, após o golpe militar de 1973, e de ser libertado com o retorno dos governos constitucionais, em 1985, Mujica criou o Movimento de Participação Popular (MPP) dentro da Frente Ampla.
A Frente Ampla surgiu como uma “esperança”, diante do desastroso sistema binário dos partidos Blanco e Colorado. Embora nunca tenha se definido como socialista, foi composta pelo Partido Comunista e pelo Partido Socialista do Uruguai, além do MPP e de outros setores de centro-esquerda. O programa da Frente Ampla mencionava a reforma agrária, a ruptura com o FMI e a punição aos genocidas. Porém, o governo de Tabaré Vázquez, com Mujica como ministro, traiu tais princípios desde o início.
Helios Sarthou – dirigente histórico da Frente Ampla, que posteriormente a abandonou – explicou assim as razões da sua ruptura com a mesma: “A Frente traiu tudo, mas, fundamentalmente, traiu o respeito pelos mortos e desaparecidos, ao manter intacta a Lei da Impunidade. Submeteu o país às políticas econômicas do império e de seus bancos. Renunciou à transformação da sociedade, aceitando o assistencialismo. Subordinou a luta de classes à política da conciliação. Quitou a dívida externa antecipadamente. Privatizou empresas públicas e ampliou o abismo entre ricos e pobres. Minou os princípios da esquerda, fazendo com que ela deixasse de ser de esquerda” (http://www.nodo50.org/ceprid/, citado por El Socialista, 28/10/2009).
Jorge Zabalza, um dos “reféns da ditadura” junto com Mujica, falecido em 2022, afirmou num relatório sobre direitos humanos: “Em Mujica, vejo um esforço deliberado para esquecer e perdoar. Ele venceu as eleições justamente quando o plebiscito para revogar a Lei da Caducidade estava acontecendo, e não se arriscou; não disse uma única palavra e a proposta de revogação foi derrotada por 1%. Em outras palavras, se Mujica tivesse incorporado o tema da verdade e da justiça em seu discurso de campanha, ela poderia ter sido revogada naquele momento.” (Montevideo Portal, 2019). Depois, Mujica causou impacto quando disse: “Não quero ter idosos na prisão”, propondo prisão domiciliar para os militares com mais de 70 anos.
Algo que não foi noticiado na mídia ultimamente é que Mujica promoveu políticas repressivas e anti-operárias. Um dos episódios mais lamentáveis foi quando ele declarou, diante da greve dos trabalhadores municipais de Montevidéu, os serviços públicos como “essenciais”, enviando o Exército para recolher o lixo e quebrar o protesto. Mujica pediu aos professores que trabalhassem mais e proibiu ocupações em locais públicos.
Outro fato significativo ocorreu no ano passado, quando Mujica se opôs ao plebiscito da Previdência Social promovido pelo sindicato PIT-CNT, que buscava eliminar as AFAP, manter a idade de aposentadoria em 60 anos e aumentar as pensões mínimas.
Mujica com os grandes empresários
Como presidente, ele deixou bem claro qual seria sua política em relação às grandes empresas. Um ano após o início de seu governo, num discurso no luxuoso Hotel Conrad, em Punta del Este, diante de mais de 1.000 empresários uruguaios e estrangeiros, incluindo 400 argentinos – López Mena (Buquebus); Ratazzi (Fiat) e Eurnekian (Aeroportos 2000) –, Mujica disse: “Venham investir. Aqui não vão expropriar seus bens, nem vão taxar vocês”. Até o ex-presidente Lacalle o elogiou: “Ele deixou de dizer que queria construir o socialismo e passou a defender o investimento nacional e estrangeiro. As opiniões do presidente Mujica são bem-vindas” (Clarín, 12/02/2011).
Segundo Mujica, “não podemos arrecadar dinheiro aumentando impostos sobre a riqueza, porque estaremos matando a galinha dos ovos de ouro. A burguesia é como uma vaca: alguns espertos querem matá-la para assá-la. O mais inteligente é deixá-la pastar, para que possamos continuar a ordenhá-la.” Dessa forma, Mujica pregou o velho ditado de todos os governos de centro-esquerda: é preciso governar com os grandes empresários, mas “com inteligência local”, para que eles ajudem a “redistribuir a riqueza”. Isso justamente quando as estatísticas mostravam que, no Uruguai, 50% das crianças estavam abaixo da linha da pobreza.
Mujica e sua definição de esquerda
Em 2021, perguntaram-lhe o que significa ser de esquerda. Ele respondeu: “Hoje, nesse espaço está ocorrendo uma batalha cultural. Minha geração, ainda profundamente imersa em ideologia, acreditava que, mudando as relações de produção, poderíamos construir um novo ser humano. Porém, os seres humanos não são condicionados apenas pelas relações econômicas. Ou muda a mentalidade do Sapiens e se alcança o autocontrole, ou vamos arruinar a vida na Terra.”
Seu pensamento é claro. Mujica diz que questionar o capitalismo não é mais válido — ou que, pelo menos, apenas críticas parciais são válidas —, para terminar convivendo com ele.
Nós, da Izquierda Socialista e da nossa organização internacional, a Unidade Internacional de Trabalhadoras e Trabalhadores – Quarta Internacional (UIT-QI), lutamos por governos da classe trabalhadora, que rompam com a burguesia, as corporações multinacionais e o FMI. E implementem um plano econômico operário e popular a serviço dos/as trabalhadores/as e dos demais setores populares, abrindo caminho para o socialismo.
Acreditamos que devemos resgatar as bandeiras pelas quais Che lutou, quando disse: “revolução socialista ou caricatura da revolução”. As bandeiras que foram aplicadas nos primeiros anos da Revolução Cubana, com a expulsão das multinacionais, a expropriação da burguesia, a ruptura com o imperialismo, a implementação da reforma agrária e, assim, a obtenção de grandes conquistas sociais. O mesmo aconteceu com a Revolução Russa de 1917 e nos países em que a burguesia foi expropriada, como na Revolução Chinesa de 1949, entre outras; ainda que, na antiga URSS, na China e em Cuba, sob a liderança da burocracia, tais processos tenham sido interrompidos e revertidos até a restauração do capitalismo.
Estamos convencidos de que no Uruguai, na Argentina e em qualquer país do mundo, se o capitalismo não for derrotado e o socialismo não for instaurado — que deve ser mundial e com plena democracia para o povo trabalhador —, não haverá saída para os/as trabalhadores/as, os/as oprimidos/as e a juventude.
Com essas reflexões, e respeitando a dor daqueles que se despediram de Mujica, pedimos que sejam tiradas conclusões sobre o caminho a seguir e as organizações que devemos fortalecer para acabar com o capitalismo e o imperialismo, começando a construção do verdadeiro socialismo.