Sobre o PTS e uma homenagem a Ernest Mandel

Por Nicolas Nuñez, da Izquierda Socialista Argentina

Num texto publicado em Ideas de Izquierda, por ocasião dos 100 anos do nascimento de Ernest Mandel, o dirigente Christian Castillo, do PTS (Fracción Trotskista – CI) analisa criticamente a trajetória do histórico dirigente trotskista europeu. Esse texto dá continuidade à intervenção de Castillo num evento de homenagem a Mandel realizado em 30 de março pelo Poder Popular, Marabunta e Economistas de Esquerda, do qual participaram outros militantes ligados historicamente ao dirigente trotskista belga.

Entretanto, o documento se omite sobre a questão essencial das posições adotadas por Mandel e seu legado como dirigente, deixando sem resposta a pergunta: foi sempre correta essa trajetória militante de mais de meio século? Ela levou a um avanço na construção de partidos revolucionários trotskistas ou se tratou de uma sequência de erros e capitulações ao revisionismo, cuja definição clara se faz necessária para levar adiante a reconstrução da Quarta Internacional?

Trata-se, para Castillo, de que Mandel não teve respostas políticas “à altura das circunstâncias” durante um período de sua trajetória ou, mais do que isto, de que essa trajetória foi marcada predominantemente por capitulações e a ruptura com o trotskismo e os pilares do marxismo revolucionário? No seu escrito, o dirigente do PTS não só deixa de tomar posição diante destas questões, como também afirma que Mandel, dentre os dirigentes trotskistas do pós-guerra, foi o que “desenvolveu a obra teórica mais prolífica” e que ele se sente mais próximo dos escritos de Mandel do que os militantes do trotskismo oficial. Por outro lado, empurra sistematicamente para debaixo do tapete elementos centrais da trajetória da corrente mandeliana.

Sem nos estendermos demasiado sobre estas questões, queremos assinalar que a capitulação sistemática às direções reformistas e traidoras, a renúncia a construir organizações políticas baseadas no centralismo democrático, a renúncia a lutar por um governo dos trabalhadores, além do equívoco metodológico que foi embelezar o sistema capitalista em sua época de decadência, obrigam nossa corrente morenista, representada pela Esquerda Socialista e a Unidade Internacional de Trabalhadores e Trabalhadoras – Quarta Internacional (UIT-QI), a encarar o assunto de outra forma. A nosso ver, a reconstrução do movimento trotskista em nível mundial requer uma delimitação nítida da obra desse que foi, ao longo de décadas, o principal dirigente do Secretariado Unificado, pois entendemos que, numa visão global, o seu legado é responsável, até hoje, da adoção de linhas equivocadas para a construção de organizações revolucionárias.

Antes de passar à polêmica com o texto de Castillo, cabe ressaltar que nossa corrente reconhece o peso intelectual e o compromisso militante de uma personalidade da estatura de Mandel. Trata-se de um dirigente que sofreu a perseguição nazista, tendo-lhe sido recusada a entrada em vários países, pessoalmente comprometido em diversos processos revolucionários e cuja importante contribuição teórica a partir de uma visão marxista teve ampla difusão, inclusive fora do movimento trotskista.Os debates entre Nahuel Moreno e Mandel sempre se deram num clima de respeito, podendo-se afirmar que a polêmica entre o morenismo e o mandelismo foi aguda e, por momentos, áspera, mas sempre clara e fraterna, como se verá adiante. Não é o que ocorre, infelizmente, com as companheiras e os companheiros da direção do PTS, que vêm falsificando há trinta anos – e o fazem inclusive na resenha que ora criticamos – as posições de Moreno, evitando responder às questões realmente colocadas.

No texto de 1973 intitulado “Um documento escandaloso”, onde polemiza com Mandel e que na militância do PSTU ficou conhecido como o Morenazo [1], o dirigente argentino começava por recuperar os ensinamentos de Trotski sobre como dirigir uma discussão política, e lembra que a classe trabalhadora tem poucas horas para dedicar à leitura e ao debate político, e que portanto se deve passar logo “à avaliação concreta dos fatos e às conclusões políticas”, evitando dar voltas ao assunto[2]. Partindo deste critério metodológico, nossa interpretação é que, para o PTS, os aspectos principais e decisivos do posicionamento de Mandel são os apontados por Christian Castillo, a saber: a definição de classe dos Estados em que a burguesia foi desapropriada no pós-guerra; a caracterização, no início dos anos 50, de um período de “guerra-revolução” em que era iminente uma conflagração mundial entre os EUA e a URSS; a definição político-organizativa de um “entrismo sui generis” que implicava a dissolução no interior dos partidos comunistas e social-democratas; a definição de uma nova etapa do capitalismo, caracterizada por uma nova expansão das forças produtivas. Em menor medida, Castillo também ressalta o apoio de Mandel às derivas guerrilheiras da segunda metade dos anos 60 na AL e encara com relativa benevolência o processo de reformas impulsionado por Gorbatchov nos últimos tempos da União Soviética. Finalmente, reivindica o sufrágio universal e o parlamentarismo como instrumentos necessários de um “Estado pós-revolucionário”. Com respeito a este último ponto e à questão do entrismo, Castillo não deixará passar a ocasião de amalgamar posições com as observações de Nahuel Moreno para desfigurar o legado deste último, assunto que comentaremos no final do presente texto.

Uma série de omissões

Na lista das divergências do PTS com o mandelismo, o que de saída chama a atenção são as omissões.

O ponto central é que Castillo não vê a necessidade de se definir quanto ao fato de Mandel, como principal dirigente da Quarta Internacional desde o pós-guerra e, a partir de 1963, do SU da Quarta Internacional, ter encabeçado, juntamente com Pablo, o setor do trotskismo que foi assumindo posições cada vez mais revisionistas e oportunistas. A partir daí, foi traída a revolução operária na Bolívia em 1952 com o apoio ao governo burguês do MNR; ao mesmo tempo, a construção dos partidos revolucionários foi preterida pelo apoio às direções burocráticas de Mao e Fidel, levando à crise da Quarta e à sua divisão já nos anos 50, com a consequente dispersão do movimento trotskista, ainda não superada nos dias de hoje. O artigo em questão não menciona o papel decisivo de Mandel para a transformação da Quarta Internacional num mero agrupamento de tendências sem debate nem coesão programática, como resultado da estratégia que deixou de lado a construção de partidos leninistas e privilegiou a construção de partidos-movimentos “anticapitalistas” amplos.

Cabe lembrar que foi este teórico do SU quem primeiro levantou a tese de que Lênin e Trotski teriam caído no substitucionismo da classe trabalhadora, durante os “anos obscuros” de sua intervenção em 1920-21, com respeito ao papel central de direção do Partido Bolchevique na defesa do processo revolucionário, fazendo eco às recorrentes hipóteses revisionistas que responsabilizam o autor de O Estado e a Revolução e o líder do Exército Vermelho pela posterior ascensão de Stalin. Chama a atenção, em se tratando de uma corrente que se apresenta como profundamente preocupada pela vinculação entre o político e o militar, que não haja nenhuma referência ao fato de que Mandel tenha repudiado as medidas político-militares de preservação do Estado soviético defendidas por Lênin e Trotski[4].

Pois bem, queremos ressaltar que, no pólo oposto ao revisionismo mandeliano, Trotski nos deixou assinalamentos determinantes, como nesta passagem de Ditadura e revolução, de 1937:

A ditadura revolucionária de um partido proletário não é, a meu ver, algo que se pode aceitar ou rejeitar livremente: é uma necessidade objetiva imposta pela realidade social da luta de classes, a heterogeneidade da classe revolucionária, a necessidade de uma vanguarda revolucionária selecionada com o objetivo de garantir a vitória.

Pode-se dizer que a construção teórica de Mandel, desde o seu texto de 1977 intitulado Democracia Socialista e ditadura do proletariado, enterrou em boa parte essas claras definições trotskistas ao mesmo tempo em que desestimava o papel do partido, exaltando as liberdades burguesas no marco do eurocomunismo[5], tendência dos partidos comunistas que rejeitou não apenas a burocracia estalinista mas também, globalmente, a perspectiva revolucionária. Tampouco este aspecto é mencionado no texto de Castillo.

O trabalho de Nahuel Moreno, A ditadura revolucionária do proletariado[6], constituiu a resposta principista de nossa corrente a esse desvio do SU dirigido por Mandel e foi o documento com o qual polemizamos no XI Congresso da Quarta Internacional, em 1979. Mas aqui se interpõe mais um dos fatos omitidos pelo PTS.

Efetivamente, no texto de Castillo a relação do mandelismo com as correntes traidoras reformistas, estalinistas e pequeno-burguesas está caracterizada como mera “geração de expectativas” ou “embelezamento”. O fato é, no entanto, que o mandelismo foi muito mais longe. No caso da Nicarágua a que nos referimos, Mandel apoiou o governo burguês do sandinismo com a oposição anti-somozista de Violeta Chamorro e Alfonso Robelo de julho de 1979. Como assinala o dirigente do PTS em nota ao pé do seu texto, Mandel caracterizou esse governo como um “governo operário” e, mais do que isto, apoiou Ortega quando este ordenou o encarceramento e expulsão dos militantes, trotskistas ou não, da Brigada Simón Bolívar, mobilizada pelo morenismo, a qual, tendo combatido contra o exército de Somoza, havia iniciado um processo exemplar de organização operária independente do governo da direção sandinista com a burguesia. Diante desta flagrante violação dos princípios revolucionários, a corrente morenista retirou-se da Quarta Internacional, enquanto, por seu lado, o mencionado XI Congresso ratificou o apoio ao governo burguês de Ortega com os empresários e a expulsão da Brigada[7]. Tampouco é mencionado pelo PTS que Mandel, o dirigente que criticava Trotski para defender que num processo revolucionário se deveria garantir a plena liberdade política (inclusive para a burguesia), não viu contradição entre essa posição e o apoio à repressão e expulsão dos militantes trotskistas que lutaram na Nicarágua. Não é necessário, perguntamos a esta altura, esclarecer as novas gerações do movimento trotskista que o seu dirigente mais em evidência após a morte de Trotski achou correto um governo burguês reprimir e expulsar militantes que impulsionavam a organização da classe trabalhadora no marco de um processo revolucionário?

A homenagem do PTS a Mandel também omite a traição contra a Revolução Boliviana de 1952, quando Mandel e Michel Pablo se posicionaram politicamente pelo apoio ao governo burguês de Paz Estenssoro. Isto se deu no marco de um processo de luta em que o trotskismo, que participava da direção da COB, estava bem implantado nas massas e podia influenciar o curso dos acontecimentos, tendo os trabalhadores destruído o exército burguês de armas na mão e quando a palavra de ordem era “Todo o poder à COB-Central Operária Boliviana!”

Não é o caso de ensinar aos que se aproximam de um trotskismo ainda minoritário que o trotskismo foi uma força importante numa das revoluções operárias mais potentes deste continente, mas acabou exercendo um papel lamentável sob a responsabilidade de dirigentes como Mandel e Pablo?

Em suma, Castilho critica corretamente o apoio de Mandel, nos anos 60/70, à proposta de estender a tática de guerra de guerrilhas a toda a América Latina, mas não aponta o vínculo entre esse e outros desvios de Mandel e dos mandelianos, cuja história tem consistido, até os dias atuais, em seguir as preocupações de setores de vanguarda e capitular às direções reformistas ou contrarrevolucionárias do momento. Que se trate de Tito, Mao, Fidel Castro ou das direções pró-guerrilheiras nos anos 60/70, zapatistas em 1995, lulistas ou chavistas de 2000 em diante, todas elas sempre tiveram, onde quer que fosse, o apoio de alguma organização mandeliana. A própria mudança de rumo anti-leninista representada por partidos amplos, que inspirou diretamente Mandel no final de sua vida, impregnou e fez parte dessa onda de impressionismo que não cessou de buscar atalhos para chegar à construção de partidos revolucionários, contrariamente aos ensinamentos de Lênin e Trotski. Isto dizendo, reconhecemos a necessidade de desenvolver táticas específicas de unidade e enfrentamento com essas correntes, como o fez o morenismo ao longo de sua história, mas via de regra com o objetivo de desmascará-las e não de lhes dar apoio político. Por isto, chamamos a atenção para a omissão do PTS ao não mencionar essa série de capitulações e, também, ao silenciar sobre a participação de uma das seções da QI mandeliana no primeiro governo de Lula, quando aceitou a pasta do Desenvolvimento Agrário em 2002.

A importância dos debate sobre as forças produtivas

Em seu artigo, Castillo assinala que Mandel evoluiu progressivamente para a definição de uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo, caracterizada como neocapitalismo ou capitalismo tardio. Esta caracterização ultrapassou o marco do movimento trotskista, sendo adotada por influentes teóricos do marxismo acadêmico, como Fredric Jameson, que definiu sinteticamente o pós-modernismo como a lógica cultural do capitalismo tardio. Para não nos estendermos demasiado nessa polêmica, abordaremos o debate sobre a nova etapa do capitalismo apenas no que diz respeito ao seu aspecto central: uma concepção revisionista economicista e tecnicista das forças produtivas, que levou Mandel a considerar equivocada a caracterização do Programa de Transição segundo a qual haveria uma estagnação das forças produtivas. Como já assinalado no “Morenaço”, isto implica uma enorme diferença nas definições políticas e nas linhas de ação voltadas à construção de organizações revolucionárias.

Ainda que Castillo sustente que, para a sua corrente, o crescimento das forças produtivas identificado por Mandel deve ser relativizado – há bastante tempo que o PTS propõe a noção de desenvolvimento parcial das forças produtivas – concretamente se situa, de fato, mais próximo de Mandel, afastando-se de Trotski e dos quatro primeiros congressos da Terceira Internacional, pois ao tomar como parâmetro central o crescimento das potências imperialistas(8) expresso no PIB, vem a coincidir essencialmente com uma concepção economicista das forças produtivas. Diversamente, Marx, Trotski e Moreno partem da realidade quando levam em conta as condições concretas de existência das pessoas e dos povos, as quais, obviamente, só têm piorado, tal como vimos mencionando e já era assinalado por Moreno nos anos Sessenta e Setenta.

Trata-se de uma questão importante porque, a nosso ver, é a que mais claramente representa a concepção marxista segundo a qual é a classe trabalhadora a principal força produtiva. Assim, a evolução desta variável, ou seja, das condições de vida dos trabalhadores, não é apenas mais um dado para os relatórios da ONU e do Banco Mundial, senão que sinaliza estrategicamente se estamos vivendo uma época revolucionária (com a sua correspondente instabilidade e a decadência do regime de produção vigente, que impossibilita a concessão de melhoras estruturais às maiorias trabalhadoras) ou reformista, caracterizada por um crescimento gradual e controlado e a cessão de alguns benefícios às massas.

Resumindo, diremos que a concepção mandeliana do desenvolvimento das forças produtivas dentro do capitalismo deixa sem material o Programa de Transição e a alternativa “Socialismo ou Barbárie”, e corresponde a uma definição estratégica que, dando primazia ao aumento do consumo e não à carestia de vida, coloca como eixo central o debate ideológico voltado para a vanguarda. A concepção trotskista e morenista, ao contrário entende que a decantação do capitalismo implica um processo de miséria crescente e que, portanto, o eixo central deve ser a construção dos partidos revolucionários trotskistas para a ação, juntamente com o avanço da mobilização das massas para vincular a luta por melhores condições de vida à batalha pelo governo dos trabalhadores, tratando de ganhar a vanguarda para impulsionar essa tarefa com o partido revolucionário. Castillo também deixa de tomar posição sobre o grau de sua afinidade com os escritos de Mandel no que se refere à concepção mandeliana do trabalho com a classe trabalhadora e o fenômeno da vanguarda, e o abandono estratégico da construção de partidos trotskistas durante mais de meio século.

Mas cabe assinalar, em suma, que as forças produtivas têm um terceiro pilar, que é natureza, além do fator humano e da técnica. O próprio Marx apontou para a transformação das forças produtivas em “forças destrutivas” e a destruição, por obra do capitalismo, das duas fontes de riqueza que são o trabalhador e a natureza(9). Seria anacrônico fazer a crítica das definições mandelianas do capitalismo do pós-guerra lançando mão da evidência científica atual. Mas o PTS escreve num momento presente que – à parte o negacionismo de neofascistas como Trump – conta não apenas com a evidência empírica dos rumos da catástrofe climática e ambiental a que nos leva o capitalismo, mas também com as advertências provenientes dos meios científicos relativas ao momento em que se dá o salto qualitativo da destruição ambiental(10), ou seja, o boom do pós-guerra, que Mandel e o PTS caracterizam precisamente como sendo de desenvolvimento parcial ou “crescimento relativo”.

Continuar sustentando uma definição de forças produtivas com base no aumento do PIB, quando o capitalismo imperialista, com sua lógica de acumulação permanente, bem pode “crescer” à custa do risco de extinção da própria humanidade, significa demolir a importância estratégica desta categoria como índice da época histórica em que se desenvolve a luta de classes. O pouco caso do PTS em relação à intervenção em espaços de mobilização socioambiental talvez se explique por lhe faltar uma compreensão marxista da dimensão do problema ambiental para o pensamento estratégico revolucionário. Mas cabe dizer a esta altura que Mandel, apesar da sua definição economicista das forças produtivas, não deixou de iniciar, no Secretariado Unificado, uma elaboração que serviu de embasamento para a tendência ecosocialista, cuja aparição e desenvolvimento se deram, como não podia deixar de ser, com as limitações programáticas da sua corrente, ou seja, desvinculando as tarefas da luta contra a destruição ambiental da batalha por governos de trabalhadores e a construção de partidos revolucionários(11).

Uma vez mais sobre o “objetivismo” e a “revolução democrática”

Em seu artigo, Castillo afirma que o “objetivismo” teria sido um dos problemas metodológicos não só da obra de Mandel, mas também de “grande parte dos dirigentes e correntes do trotskismo do pós-guerra”. Trata-se aqui, como se podia esperar do PTS, de uma crítica que amalgama coisas diferentes, uma vez que também implica as posições de Moreno.

Se por tal objetivismo se compreende um desenvolvimento teórico que toma um elemento objetivo (isto é, a base econômica, tecnológica ou outro fundamento material) para lhe atribuir o dom de determinar mecanicamente os fenômenos superestruturais e políticos, ou o próprio desenvolvimento histórico, podemos dizer que Ernest Mandel, em mais de uma ocasião, enveredou efetivamente por esse caminho. Partindo das tarefas de desapropriação da burguesia levadas a cabo em distintos países, o mandelianismo deduziu o caráter revolucionário de dirigentes como Tito, Mao e Fidel Castro; paralelamente, revisando todas as posições de Trotski, partiu da base social dos estados operários, isto é, a propriedade estatal dos meios de produção, para negar o caráter restauracionista da burocracia soviética(12) – algo que tampouco vem a ser assinalado por Castillo. Dos conflitos entre o imperialismo ianque e a URSS deduziu que havia um estado de guerra iminente a justificar o “entrismo sui generis” nos partidos comunistas e socialistas, na expectativa de que se poderiam transformar em direções revolucionárias. Da expansão econômica e do avanço tecnológico em certas áreas deduziu a retomada do crescimento das forças produtivas sob o capitalismo imperialista. Finalmente, da superioridade numérica e do caráter historicamente progressista da classe trabalhadora, da verdade inerente ao programa revolucionário, deduziu que o sufrágio universal seria uma ferramenta privilegiada do ”Estado pós-revolucionário”, elevando a defesa das liberdades burguesas ao nível de imperativo categórico-moral, acima das condições reais da luta de classes nas situações concretas.

O problema da confusão e das falsificações do PTS é que, em todos esses debates históricos, a posição e o método do morenismo sempre foram o oposto. Vejamos, a seguir, dois exemplos da confusão que faz o PTS no seu artigo.

Uma coisa é a breve experiência morenista de entrismo nas organizações sindicais peronistas, que durou entre 2 e 3 anos e se deu no marco de um movimento político burguês proscrito que não tinha nenhuma centralização política, de modo que a tática de aproximação com a classe operária peronista pôde ser aplicada sem que se tivesse de adotar nenhuma definição política imposta pela hierarquia peronista, ou mesmo por Juan Domingo Perón, e sem deixar de editar publicações próprias ou sustentar de modo independente a construção do próprio partido revolucionário. Outra coisa foi, ao contrário, a dissolução, ao longo de 18 anos, dos militantes trotskistas europeus nos partidos do estalinismo e da socialdemocracia, na esperança de que se tornariam revolucionários. Está claro, portanto, que o traço de igualdade que pretende colocar o PTS não resiste ao menor debate.

Tampouco resiste a qualquer análise séria fazer um amálgama entre a capitulação do mandelianismo ao eurocomunismo e o desenvolvimento do pós-marxismo, de um lado, e, do outro, a caracterização do processo das ditaduras latino-americanas elaborada por Moreno. Por mais que o PTS, ao longo de 30 anos, tenha batido na tecla do “programa da revolução democrática” como equivocado “etapismo” de Moreno, isto de fato não existiu e continuamos à espera de que apresentem um só caso em que nossa corrente tenha apoiado qualquer governo burguês, em algum lugar do mundo, como passo necessário ou “etapa democrática” da revolução socialista(13). Embora não seja mencionado no artigo em questão, não é necessário muito esforço para constatar, como mencionamos acima, que na prática do mandelianismo é que se verificou com frequência esse tipo de capitulação.

Em conclusão, a impressão resultante é que o sectarismo, a virulência e a deturpação sistemática das posições de Nahuel Moreno pelo PTS são a outra face do oportunismo dessa organização ao abordar o legado mandeliano.

Notas

1.El Partido y la revolución. Editorial CeHUS. Disponível em http://www.nahuelmoreno.org/escritos/el-partido-y-la-revolucion-1973.pdf

2. Leon Trotski, “Carta abierta al camarada Burnham”, 1940. Disponível em http://marxists.org/espanol/trotski/1940s/edm4.htm

3. Sobre este debate ver Moreno, “Dos líneas frente a las masas bolivianas: la oportunista y la revolucionaria”. Em https://nahuelmoreno.org/wp-content/uploads/2020/04/Dos-lineas-frente-a-las-masas-bolivianas.pdf . Sobre outras polêmicas deste período, ver também “Ruptura con el pablismo”, em http://www.nahuelmoreno.org/escritos/Ruptura_con_el_pablismo-1953.pdf

4. Na realidade, surpreende menos vincular o artigo de Castillo com a obra Estrategia socialista y arte militar, de Emilio Albamonte e Matías Maiello, também dirigentes do PTS, em cujas 600 páginas nenhuma trata do vínculo entre intervenção política e militar na “única guerra conduzida por uma direção socialista revolucionária: a defesa da Revolução por parte das massas trabalhadoras e camponesas, o Exército Vermelho e o Partido Bolchevique. Nahuel Moreno o fez ao abordar, no texto acima citado, o papel de Lênin e Trotski na guerra civil contra o Exército Branco apoiado pelas potências imperialistas.

5. V. “Capitulación al eurocomunismo”, carta de Nahuel Moreno ao SU, 1977.

6. “La ditadura revolucionaria del proletariado”. Em https://www.nahuelmoreno.org/escritos/dictadura-revolucionaria-del-proletariado-1978.pdf

7. Sobre esta experiência, v. La Brigada Simón Bolívar, Ed. El Socialista, 2009.

8. Ver Emilio Albamonte, 70 anos do Programa de Transição, onde também se percebe a universalização eurocentrista de Mandel sobre a questão da melhora parcial e transitória das condições de vida da classe trabalhadora nos países imperialistas, que, no entanto, não foi a realidade do conjunto dos trabalhadores em nível mundial.

9. “Portanto, a produção capitalista só consegue desenvolver a técnica e a combinação do processo social de produção socavando ao mesmo tempo as duas fontes originais de toda a riqueza: a terra e o homem” (Trad. livre da cit. em esp.). Tomo I de O Capital, capítulo sobre a grande indústria e a agricultura.

10. Roberto Andrés aborda o aspecto científico deste debate num artigo disponível em https://www.eldiarioar.com/sociedad/bienvenidos-antropoceno-humanidad-estuvo-cerca-cambiar-geologica 1 8992597.html

11. V. a respeito o documento da UIT-CI “La catástrofe que nos amenaza y como combatirla”. Em https://uit-ci.org/index.php/2021/12/04/la-catastrofe-que-nos-amenaza/ Também disponível em português (Correspondência Internacional, nov-dez. 2021).

12. “O centrismo burocrático se caracteriza pela síntese permanente de dois fatores contraditórios: a preservação do modo de produção não-capitalista nos estados operários e, ao mesmo tempo, a vontade de impedir a revolução mundial” (Trad. livre da cit. em esp.). Ernest Mandel, “La burocracia”, 1969.

13. V. o art. de Gabriel Schwerdt, “Polémica com la izquierda diário/PTS: Nahuel Moreno fue el dirigente más importante del trotskismo latino-americano”. Em https://izquierdasocialista.org.ar/2020/index.php/blog/elsocialista/item/16413-debate-con-la-izquierda-diario-pts-nahuel-moreno-fue-el-dirigente-mas-importante-del-trotskismo-latinoamericano V. também Miguel Sorans, “El debate sobre la revolución permanente y Nahuel Moreno”, em https://uit-ci.org/index.php/2022/08/16/el-debate-sobre-la-revolucion-permanente-y-nahuel-moreno/

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