Entrevista exclusiva de Juan Carlos Giordano para o Blog Comunistas de Cuba

 

 

Por Imprensa UIT-QI

 

No dia 14 de Março passado, Frank Garcia, em nome de Comunistas de Cuba [1], entrevistou Giordano no nosso canal do Telegram. Infelizmente, devido a problemas técnicos, não pudemos transcrever a entrevista; contudo, Giordano teve a amabilidade de responder às perguntas por escrito. Agradecemos pela colaboração do nosso camarada e amigo Pablo Almeida, também dirigente desta organização. Sem ele, esta entrevista não teria sido possível.

 

Frank Garcia: Como está Giordano?

 

Juan Carlos Giordano: Muito bem. Obrigado pelo convite, Frank, e em nome da Izquierda Socialista [Esquerda Socialista] e da UIT-QI quero te dizer que continuamos a apoiar todo o processo da esquerda crítica, viajamos quando fomos convidados e seguimos acompanhando-o de perto. E erguemos a nossa voz exigindo a liberdade dos/as presos/as, condenando a repressão do governo cubano.

 

FG: O que é a Izquierda Socialista? Como nasceu, qual é a sua história e qual a sua proposta?

 

Giordano: Izquierda Socialista é um partido socialista revolucionário da Argentina, que foi fundado em 2006 (há 17 anos), mas tem uma história de mais de 80 anos de luta no país. Izquierda Socialista é uma continuação da corrente trotskista fundada em 1944 por Nahuel Moreno, nosso dirigente máximo.

 

Moreno faleceu em 1987. É considerado o mais importante dirigente do trotskismo latino-americano. Desde muito jovem, aos 24 anos, assumiu em 1948 a tarefa de reconstruir a Quarta Internacional após o assassinato de Leon Trotsky.

 

Podemos dizer que somos continuadores dessa corrente, que na Argentina teve o mérito de retirar o trotskismo dos debates em cafés e levá-lo pela primeira vez ao movimento operário, com o GOM-Grupo Obrero Marxista [Grupo Operário Marxista] – fundado por Moreno em 1945.

 

Ao longo dessa trajetória tivemos diversos nomes: PRT – La Verdad [PRT – A Verdade] nos anos 60, PST (Partido Socialista dos Trabalhadores) nos anos 70 – partido que tem mártires assassinados pelas quadrilhas fascistas da Triplo A sob o governo peronista de então, e mais de 100 companheiros e companheiras desaparecidos sob o genocídio da última ditadura militar. Também teve o nome de Movimiento al Socialismo (o velho MAS) [Movimento ao Socialismo] nos anos 80.

 

Por sua vez, a Izquierda Socialista é internacionalista. Nisto somos seguidores dos legados de Marx, Lenin e Trotsky. Fazemos parte da Unidade Internacional de Trabalhadoras e Trabalhadores – Quarta Internacional (UIT-QI), que está inserida em dezenas de países, com partidos irmãos na América Latina e Caribe, Estados Unidos, Estado Espanhol, Turquia, entre outros. A partir daí, propomos-nos a unir os revolucionários para acabar com esse sistema capitalista-imperialista e lutar por um mundo socialista, que terá que ser com democracia plena para os/as trabalhadores/as, oposto às atrocidades que o stalinismo fez na ex-URSS.

 

Sobre a questão: o que propomos? Bem, pretendemos continuar apoiando as lutas operárias e populares na batalha estratégica para conquistar governos dos/as trabalhadores/as e da esquerda, com uma Argentina socialista, que acabe com a fome, a submissão, a dependência e o saque de nossas riquezas executado por todos os governos. Este ano a Argentina vai comemorar 40 anos da queda da ditadura. Fala-se das “conquistas da democracia”, mas todos os governos capitalistas levaram a Argentina – um país rico, que tem tudo – a ter 40% de pobreza, uma inflação anual de 100%, salários e pensões miseráveis e a ser submissa ao FMI. Isso foi visto nos quatro anos de governo de Macri (centro-direita) e nestes últimos quatro anos de peronismo, com Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner.

 

A Argentina precisa, como todos os países, de uma saída de fundo. Isso passa por nos livrarmos dos ditames do FMI, rompendo os vínculos econômicos e políticos que nos prendem ao imperialismo; por deixar de pagar uma dívida usurária e fraudulenta, que vem da ditadura e foi paga pela classe trabalhadora com tremendos planos de ajuste. Com esse dinheiro e com um forte imposto sobre os de cima, é preciso implementar um plano econômico operário e popular, que proporcione salários e pensões decentes e trabalho genuíno. Terminando com o saque das mega-mineradoras e multinacionais, que roubam nosso petróleo, gás e lítio. Reestatizando as empresas privatizadas. Nacionalizando os bancos e o comércio exterior. Isso só será alcançado por um governo operário e socialista.

 

Em resumo: Izquierda Socialista tem várias décadas de trajetória e experiência na luta de classes, combatendo as direções traidoras, a burocracia sindical, os partidos patronais e o capitalismo e lutando pelo socialismo. Com acertos e erros, continuamos hoje a mesma batalha sob essas bandeiras, apoiando as lutas operárias e populares, das mulheres e dissidentes, da juventude, lutando por uma nova direção sindical antiburocrática no movimento operário e por uma saída política revolucionária. Rejeitamos todo tipo de divisionismo e auto-proclamação. Somos um dos partidos fundadores da Frente de Izquierda Unidad [Frente de Esquerda Unidade], em 2011, e convocamos a unidade dos revolucionários para promover partidos desse tipo em cada país e para  reconstruir a Quarta Internacional. Em última análise, lutamos para acabar com este sistema capitalista imperialista, impondo governos da classe trabalhadora e do povo.

 

FG: Qual você acha que será o resultado das eleições presidenciais na Argentina, que acontecerão este ano? Quais são as perspectivas da Frente de Izquierda Unidad?

 

Giordano: O governo peronista da Frente de Todos é muito ruim. Ao vencer as eleições em 2019, pediu o voto “contra a direita” de Macri (governo antecessor). E depois de 4 anos de governo supostamente “nacional e popular”, só cresce a desigualdade social, a distribuição regressiva da renda – os capitalistas, grandes empresários, oligarcas e multinacionais ficam com a maior parte – e segue-se pagando uma dívida externa usurária e fraudulenta. O governo peronista reconheceu o endividamento mafioso de Macri com o FMI em 2018, dinheiro que foi para a ciranda financeira e que agora o povo trabalhador é forçado a pagar com mais ajuste.

 

O peronismo vive uma grande crise, agravada porque Cristina Kirchner disse que não vai concorrer às eleições, argumentando de forma mentirosa que está “proscrita” por conta de uma decisão judicial desfavorável, que ainda não foi transitada em julgado, condenando-a por sua responsabilidade em processos de corrupção com obras públicas ocorridas em seu governo anterior. Nada a impede de concorrer. O governo não tem candidaturas definidas, enquanto cresce a ruptura por baixo com ele diante da tremenda crise social. Por isso há grandes possibilidades de que ele perca a disputa.

 

Por outro lado, há a oposição de centro-direita do Juntos por el Cambio [Juntos pela Mudança], que também está em profunda crise e se prepara para tentar ser a alternativa eleitoral dos patrões. Mas as pesquisas mostram que essas coalizões não concentram mais a grande maioria do eleitorado como antes. Mesmo as principais candidaturas de ambos os lados têm uma imagem altamente negativa. O que está crescendo como parte do repúdio a tudo isso é um fenômeno neofascista de extrema direita, encarnado em um personagem perigoso e extravagante, Javier Milei. Ele propõe mais ajuste, quer acabar com os acordos trabalhistas, é antidireitos, reivindica a ditadura, Bolsonaro, Trump e toda a extrema direita mundial.

 

Diante disso, as perspectivas eleitorais da FITU [Frente de Esquerda Unidade] são animadoras. Todas as pesquisas são obrigadas a nos levar em consideração. A FITU tem uma grande oportunidade eleitoral. Há milhões que estão fartos dos governos que nos levaram a este desastre. Centenas de milhares têm como referência a Frente de Izquierda, com base na grande unidade que conquistamos. Podemos continuar a crescer numa eleição presidencial onde os rumos do país estarão em debate e só a FITU postulará uma saída de fundo.

 

A Frente de Izquierda obteve quase um milhão e meio de votos nas eleições do final de 2021. Alcançamos a maior bancada nacional de deputados/as, deputados/as estaduais e vereadores, e fizemos isso a partir do coração dos centros operários e populares.

 

A FITU cresce eleitoralmente por conta da maior unidade da esquerda que conseguimos em 12 anos, que tem a Izquierda Socialista como um dos partidos fundadores. E pelo protagonismo que tem tido nas lutas sindicais, nas oposições contra a burocracia sindical, nos movimentos de mulheres e dissidências, na juventude, na luta ambiental; em cada 24 de março, nas massivas mobilizações de repúdio ao golpe e aos seus cúmplices civis, que permanecem impunes; e, essencialmente, como referência política para aqueles que questionam tudo o que é antigo a partir de uma perspectiva de esquerda. A Frente de Izquierda é reconhecida, inclusive, pela esquerda e pelos/as combatentes de outros países.

 

O obstáculo que existe é que dentro dela há uma política divisionista em torno das candidaturas, que nos impede de aproveitar esta grande oportunidade desde já e unitariamente. PTS, PO e MST – os três partidos que, além da Izquierda Socialista, compõem a FITU – lançaram fórmulas presidenciais próprias para disputar com outros setores da FITU nas prévias anteriores à eleição geral (as PASO: Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias). Defendemos que a FITU não entre dividida nas PASO. Izquierda Socialista propõe uma fórmula presidencial unitária composta por PTS e PO, com Myriam Bregman-Gabriel Solano. Uma fórmula de acordo, por consenso, como já fizemos nas eleições presidenciais de 2019, para impedir que briguemos por cargos nas PASO. Infelizmente, o divisionismo, o sectarismo e a auto-proclamação sempre foram prejudiciais, já que está provado que nenhum partido da FITU poderia ter conseguido sozinho o que todos conquistamos juntos.

 

Para enfrentar os aparatos da Frente de Todos, do macrismo e do liberfacho Milei precisamos da máxima unidade. Se as três fórmulas forem mantidas, isso levará a militância da FITU a lutar por sua própria lista em vez de batalhar unida contra os partidos patronais, quando temos em comum o único programa operário e socialista e acordos prévios. É o que lutamos para mudar. Se não mudarem de posição (esperamos que mudem), a Izquierda Socialista vai apresentar a sua própria lista com os valiosos nomes que temos de dirigente(s), lutador(es) e parlamentar(es) eleito(os).

 

FG: Se já se sabe de antemão que a FITU não vai ganhar as eleições presidenciais, por que ela participa da disputa?

 

Giordano: Participamos das eleições para defender nossa saída de fundo, para além dos resultados. Diante da tremenda crise social, política e econômica que vive a Argentina, quem pode resolvê-la de forma favorável ao povo trabalhador é a esquerda junto com a classe trabalhadora, as mulheres e os jovens, lutando por um governo diferente, daqueles que nunca governaram. Nestas eleições vamos dizer a milhões que só um governo operário e socialista porá fim aos males sociais capitalistas. E para isso temos que romper com os partidos patronais e apoiar a Frente de Izquierda Unidad.

 

As eleições são uma grande oportunidade para agitar essa mensagem, argumentando que devemos virar as costas ao peronismo, ao macrismo e à extrema direita de Milei, porque significam mais ajuste, saque e FMI e porque a esquerda e a classe trabalhadora têm que governar.

 

Essa mensagem é fundamental, não só para o processo eleitoral, pois sabemos que as mudanças sociais virão com a mobilização. Na Argentina houve grandes acontecimentos da luta de classes ao longo da história. Em 1969 teve lugar o Cordobazo, uma semi-insurreição operário-estudantil que obrigou a ditadura da época a ter que se retirar algum tempo depois. A ditadura de 1976 caiu após a derrota das Malvinas, com uma revolução onde milhões saíram às ruas para derrubá-la, luta que conseguiu colocar na cadeia grande parte dos genocidas da época, o que pode ser visto no filme “Argentina, 1985”. Nos anos 80, o presidente radical Alfonsín teve que renunciar depois de um levante contra a fome chamado Rosariazo. Em 2001, o governo patronal de “centro-esquerda” de De la Rúa caiu com o Argentinazo, uma rebelião popular que impôs o não pagamento da dívida externa aos gritos de “que se vão todos”. Mais recentemente, em 2020, a maré verde com milhões de mulheres e dissidentes nas ruas conquistou o direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Houve levantes locais contra a mega-mineração, que pararam projetos de multinacionais. Poderíamos continuar com outros marcos. Mas a grande conclusão disso é que, apesar dessas grandes mobilizações, que chegaram a derrubar diferentes governos, os partidos patronais e a classe capitalista continuaram a governar. Por isso, a tarefa é fortalecer uma alternativa política revolucionária, que lute por um governo operário e popular, como diz o programa FITU.

 

Nós, da Izquierda Socialista, defendemos o fortalecimento da FITU nesta perspetiva. Trata-se de sermos mais fortes, para que quando houver novos estalos sociais, que ponham em causa o sistema, possamos estar mais fortes, com uma ferramenta política suficientemente enraizada, que lute por essas mudanças de fundo, no plano sindical (derrotando a burocracia da CGT e da CTA) e no plano político. Essa é a mensagem que vamos transmitir aos/as trabalhadores/as e às novas gerações neste processo eleitoral.

 

FG: A Izquierda Socialista faz parte da FITU. A FITU pode ser uma frente mais orgânica no futuro, funcionando com um corpo diretivo, formado pelos partidos que a compõem?

 

Giordano: Espero que sim. Hoje, a Frente de Izquierda é uma frente eleitoral. Apenas esporadicamente dá uma resposta unificada às mobilizações nacionais ou lança declarações sobre fatos importante da realidade, não de forma permanente. Mesmo agora, como apontei, ela está engajada em uma luta interna pelas candidaturas, algo que estamos combatendo.

 

Temos lutado para que a Frente de Izquierda se apresente de forma unitária nas lutas, nas eleições sindicais e politicamente. Esse é o desafio. Infelizmente, não está acontecendo. No ano passado, por exemplo, os demais partidos da FITU recusaram-se a dar continuidade às grandes mobilizações que tiveram lugar contra o pacto com o FMI e pelo não pagamento da dívida externa, convocadas pela FITU e várias organizações de luta e sindicais. Essa continuidade teria sido muito importante para a defesa de um plano econômico alternativo, operário e popular. O mesmo aconteceu com a grande e vitoriosa greve dos borracheiros sob a direção de seu combativo sindicato, SUTNA. Propusemos ao Partido Obrero [Partido Operário, PO], que tem em suas fileiras o secretário-geral desse importante sindicato, promover uma grande plenária nacional para agrupar a vanguarda que luta e assim fortalecer o sindicalismo combativo, com o apoio da esquerda e da Frente de Izquierda Unidad. Infelizmente, o Partido Obrero recusou.

 

Ainda mais. Anos atrás, a direção do PTS defendeu que a FITU explorasse a possibilidade de formar “um partido unificado da esquerda operária e socialista”, como o chamavam. Nós, da Izquierda Socialista, respondemos positivamente, dizendo que é necessário não só um programa comum, mas também uma prática comum. E apontamos que o PTS deveria começar por ter políticas que fortalecessem a unidade da FIT, não que a dividissem como vinham fazendo nas eleições sindicais ou em diferentes frentes de luta.

 

Nossa corrente tem uma longa história de apelo permanente à unidade da esquerda em todos os níveis, político, político-eleitoral, nas chapas sindicais antiburocráticas, em cada país e internacionalmente, com nosso chamado pela unidade dos revolucionários. Estamos convencidos de que a solução para a crise de direção não virá de uma única organização. Por isso, buscamos pontos mínimos de acordo entre os revolucionários, que possam nos aproximar e nos unir com correntes, grupos e setores revolucionários que vêm de outras tradições e experiências.

 

Especificamente, propusemos transformar a FITU em uma frente única revolucionária, superior a uma frente única operária ou sindical ou a uma frente política eleitoral. Isso faria com que a FITU passasse a funcionar cotidianamente, para responder politicamente em comum a todos os fatos da luta de classes, sejam eles políticos, sindicais, estudantis, de mulheres e dissidências ou populares. Nunca tivemos uma resposta para seguir em frente.

 

Obviamente, a FITU deve se apresentar de forma unitária. Embora esta política promovida pela Izquierda Socialista infelizmente se choque permanentemente com a dos demais partidos que compõem a FITU (que priorizam a construção de suas próprias organizações), continuaremos lutando por ela.

 

FG: Você diz que na Ucrânia há uma resistência socialista contra a invasão russa, mas o governo de  Zelensky é de extrema direita e resiste com o apoio da OTAN e dos Estados Unidos. Então, essa resistência, apesar de socialista, é subordinada a Zelensky ou é uma resistência autônoma?

 

Giordano: A primeira coisa a esclarecer é que nós, da Izquierda Socialista e da UIT-QI, repudiamos a invasão criminosa de Putin e da potência imperialista russa na Ucrânia. E apoiamos a resistência popular-militar do povo ucraniano, sem dar nenhum apoio político ou depositar qualquer confiança no governo capitalista de Zelensky. E dizendo não à OTAN. Como socialistas, sempre lutamos pela dissolução da OTAN.

 

Estamos com o povo ucraniano e a favor de seu direito de existir como nação independente, como em outras épocas estivemos com o povo do Iraque contra a invasão do país em 2002 pelo imperialismo ianque, sem apoiar o ditador Saddam Hussein. Ou com o povo argentino na guerra das Malvinas (1982) contra o imperialismo britânico, sem apoiar a ditadura genocida de Galtieri.

 

A resistência ucraniana não é socialista, é popular-militar. Os socialistas são minoria na resistência, mas estão na linha de frente. Damos nosso apoio a eles em particular. Fiz parte de uma delegação de solidariedade da UIT-QI, que em maio de 2020 se deslocou a Kiev para entregar material médico à esquerda ucraniana e aos sindicatos combativos, incluindo os ferroviários, que enfrentam as leis anti-operárias de Zelensky. A UIT-QI já enviou três comboios de solidariedade, o último em janeiro, ajudando mineiros e ferroviários em Donbass e Zaporizhia.

 

Nesta guerra, os socialistas revolucionários não podem ser neutros. O Nem-Nem [nem Rússia nem Ucrânia] favorece o genocida Putin. Apoiamos a justa causa de uma nação oprimida como a Ucrânia, que enfrenta a subjugação do imperialismo russo. Também somos a favor de que o povo ucraniano receba armas para se defender da ação criminosa de Putin, venham de onde vierem. Como aconteceu com a URSS em sua luta contra as tropas de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. A URSS recebeu naquela época armas, munições, tanques, jipes, caminhões e aviões em massa dos Estados Unidos. Dou alguns dados para demonstrar a magnitude dessa ajuda. A URSS recebeu 14.795 aeronaves, 7.000 tanques, 131.630 metralhadoras e 375.880 caminhões e caminhonetes. Isso não está ocorrendo agora com a Ucrânia. A ajuda é enviada a conta-gotas. Após um ano de guerra, Biden ainda se recusa a entregar aviões de combate e só agora vai enviar algumas dezenas de tanques modernos.

 

Há uma falsa esquerda internacional, encabeçada pelos governos de Cuba, da Venezuela e de Daniel Ortega da Nicarágua, que apóia Putin porque ele seria supostamente “anti-imperialista” e lutaria contra um governo “nazista-fascista de ultradireita”. Essa é a mentira que Putin espalha. O verdadeiro governo fascista de extrema-direita é o de Putin, que governa para as máfias dos oligarcas do petróleo e do gás reprimindo os/as trabalhadores/as russos/as. Putin persegue, prende e até envenena políticos da oposição, aqueles que criticam a guerra na Ucrânia ou a comunidade LGBTQI. E ele endossa ditadores como Lukashenko da Bielorrússia. Por tudo isto, continuamos a apelar aos povos e à esquerda mundial para que apoiem a resistência popular armada do povo ucraniano para expulsar as tropas de Putin, sem apoiar Zelensky ou a OTAN.

 

FG: Como a Izquierda Socialista caracteriza Cuba?

 

Giordano: Em Cuba existe uma ditadura de partido único que, em nome de um falso socialismo, restaurou o capitalismo na ilha. É um caso semelhante, mesmo com suas peculiaridades, ao que acontece na China e no Vietnã. São países governados por Partidos Comunistas burocráticos, de tradição stalinista, que usando o nome do socialismo exploram e reprimem a classe trabalhadora e os povos.

 

Devido ao papel de Fidel Castro e do Partido Comunista Cubano (PCC), com seu acordo com a URSS durante a década de 1960, nasceu um socialismo burocrático, que ao longo dos anos minou as conquistas da revolução até chegar à restauração do capitalismo.

 

O PCC representa uma burocracia privilegiada, que há décadas abandonou e destruiu as velhas conquistas dos primeiros anos da revolução socialista de 1959-60. As conquistas sociais da época de Che Guevara foram resultado da expropriação das grandes empresas ianques e da burguesia cubana. O castrismo gradualmente as abandonou, em primeiro lugar deixando de promover as revoluções na América Latina. Na Nicarágua de 1979, por exemplo, recomendou aos sandinistas que não criassem uma Nicarágua socialista. Em segundo lugar, fazendo negócios com multinacionais.

 

O governo cubano e seus aliados dizem que tudo é culpa do bloqueio dos Estados Unidos. Claro, o bloqueio continua e tem sua parcela de responsabilidade na crise social em Cuba. Nossa corrente sempre repudiou o bloqueio. Mas também não é verdade que o bloqueio ianque seja a única causa dos problemas do povo cubano.

 

Usando o bloqueio, a burocracia do governo do PCC sempre escondeu a realidade de Cuba. Para nós, a causa central da crise social e dos protestos é que há mais de 30 anos o castrismo abriu Cuba ao investimento privado estrangeiro, especialmente multinacionais da União Europeia, Canadá, Reino Unido e outros países, trazendo as consequências desastrosas da entrada do capitalismo na ilha. Por isso cresceu a desigualdade social, surgiram os novos-ricos, junto com a burocracia do PCC e os militares, que sempre viveram com privilégios.

 

Lembro-me que há alguns anos houve uma enorme indignação popular em Cuba com Tony Castro, um dos netos de Fidel, que foi visto dirigindo uma BMW de luxo, enquanto os trabalhadores cubanos recebiam há 25 anos salários miseráveis ​​e sem o direito de protestar, com o argumento do bloqueio e de uma possível invasão imperialista. Numa situação em que o povo cubano não tinha o direito de greve ou de eleger livremente seus dirigentes políticos e sindicais.

 

 

No turismo (um dos eixos económicos de Cuba), encontram-se as multinacionais espanholas Meliá e o grupo Barceló. 48% dos quartos de hotéis são geridos por multinacionais. Na exploração de níquel, há uma empresa mista com a multinacional canadense Sherritt. Na indústria do tabaco, especialmente de charutos – outro dos grandes produtos de Cuba -, opera a sociedade mista Habanos S.A., com o grupo inglês Tabaco Group, que detém 80% do mercado mundial de charutos. Havana Club, o famoso rum cubano, é uma empresa mista com a francesa Ricard Pernod, dona do Chivas Regal.

 

Nessas empresas mistas do Estado com as multinacionais, os/as trabalhadores/as cubanos/as passaram anos com salários entre 15 e 20 dólares. Em 2021 eles aumentaram, mas ainda são muito ruins. Não dão para nada, obrigando as famílias cubanas a subsistirem com as remessas enviadas por milhares e milhares de emigrantes, na sua maioria jovens, que saem da ilha todos os dias.

 

Enquanto isso acontece, os líderes e militares do Partido Comunista e do regime sempre tiveram salários muito altos e grandes privilégios.

 

É neste quadro que ocorreu a eclosão do 11 de julho de 2021. Ela aconteceu porque o governo cubano respondeu à crise global do capitalismo, uma das maiores crises da história, com um plano de ajuste, agindo da mesma forma que todos os governos capitalistas.

 

Essas medidas de ajuste foram lançadas em 1º de janeiro de 2021 e foram chamadas pelo governo de Díaz Canel de “Tarefa de Ordenamento”. Qual era o objetivo desse plano? Díaz Canel e o próprio Raúl Castro – que ainda estava à frente do PCC, embora tenha se retirado do governo – explicaram que tinha como objetivo “incentivar o investimento privado estrangeiro” e, assim, aumentar a produção. Semelhante ao que ouvimos em nossos países. Os governos dizem “precisamos de investimentos” e para ter investimentos, dizem os capitalistas, “precisamos ajustar um pouco as contas”.

 

Ao que tudo indica, em 2021, o salário foi aumentado, passando de 20 dólares para 87 dólares – hoje em alguns casos pode até ser maior. Mas ainda são salários baixos e, logicamente, são pagos em pesos cubanos, não em dólares. Ao mesmo tempo, por outro lado, liberaram os preços e as tarifas de alimentos, gás, eletricidade e transporte, desencadeando um processo inflacionário, com a consequente desvalorização do dólar. Tudo isso reduziu o valor dos salários.

 

FG: Para que serve Trotsky hoje em Cuba? E o que você sugere que a classe trabalhadora cubana poderia fazer para sair da atual crise econômica e política?

 

Giordano: O legado e os ensinamentos de Trotsky são muito úteis para que as novas gerações de cubanos/as e toda a classe trabalhadora da ilha saibam que o socialismo não significa o que conheceram através da velha e da nova burocracia do Partido Comunista. Em Cuba, em sintonia com o stalinismo da ex-URSS, sujaram o nome do socialismo e do marxismo. O socialismo não é uma ditadura de partido único; não significa a criação de uma burocracia milionária; não significa a repressão da classe trabalhadora ou a proibição das dissidências, políticas ou de qualquer tipo. Stalin assassinou Trotsky no México em 1940 justamente para tentar impedir que os revolucionários retomassem as verdadeiras bandeiras do socialismo com democracia, para os/as trabalhadores/as, e da luta consequente contra o sistema imperialista e contra os pactos de governo para e com a burguesia.

 

Por isso, não consideramos Maduro, Ortega, Lula, Boric ou Petro governos de esquerda ou socialistas. Em nome da esquerda, eles mantêm o capitalismo em seus países. Precisamente Trotsky, seguindo os ensinamentos de Marx e Lenin, sempre afirmou que a única saída para a classe trabalhadora era lutar para conseguir um governo da classe trabalhadora e do povo, fazendo a revolução socialista. Para isso é útil conhecer o legado de Trotsky em Cuba e no mundo.

 

Em relação à segunda parte da pergunta, sobre que propostas poderíamos fazer à classe trabalhadora cubana para tentar sair da grave crise social em que vive, dizemos modestamente que a única saída é lutar por seus direitos sociais e políticos e pelas suas liberdades. Este será o caminho para as necessárias mudanças de fundo. Antes de tudo, para acabar com o regime de partido único e conseguir um governo da classe trabalhadora e dos setores populares.

 

Nós, da Izquierda Socialista e da UIT-QI, sempre apoiaremos as lutas que o povo cubano desenvolver; a luta para acabar com o bloqueio ianque e as sanções, mas também para acabar com os ajustes e a repressão do governo. Apoiamos a luta por um salário digno para cada trabalhador, trabalhadora ou agricultor, contra os salários miseráveis acordados entre o governo e as transnacionais.

 

Acreditamos que faz parte do programa reivindicar a liberdade de discussão dos salários e dos contratos de trabalho em todas as empresas mistas, não mistas e públicas, reivindicando aí um reajuste salarial emergencial para toda a classe trabalhadora. Por um salário-mínimo equivalente ao valor da cesta básica! Outras medidas seriam acabar com os salários privilegiados de funcionários do governo, do Partido Comunista e das Forças Armadas. Que recebam o salário médio de um/a trabalhador/a cubano. Que sejam fechadas as lojas MLC, em dólares, e que haja lojas únicas, em pesos cubanos, para todos/as.

 

Deve ser reconhecido o pleno direito de protestar, de fazer greve, de ter sindicatos, de formar organizações estudantis independentes e partidos políticos. Que os artistas tenham o direito de se expressar livremente. Nós nos juntamos à demanda pela liberdade dos/as presos/as por protestar. Chega de discriminação racista. Plenos direitos aos movimentos de mulheres e LGBTQI.

 

E é preciso reverter o modelo socioeconômico capitalista de Cuba. Dizemos: basta da exploração “mista” entre o governo e as multinacionais do turismo, do tabaco, da alimentação, do rum, do níquel e de outros setores. Não às empresas capitalistas, mistas ou privadas. Pela reorganização de toda a economia a serviço dos/as trabalhadores/as. Por um novo plano econômico nacional baseado na coordenação das empresas estatais, sob a administração e gestão dos/as trabalhadores/as, e das cooperativas agrícolas, de produção e consumo. Construir um plano de produção que termine com a escassez e com a importação de 80% do que as famílias cubanas consomem. Enquadrar esta luta na perspectiva de construir em Cuba um verdadeiro socialismo, com democracia operária e popular.

 

Por tudo isso, nós, da Izquierda Socialista e da UIT-QI, incentivamos a construção de uma nova direção socialista revolucionária. E acreditamos que isso é possível e pode surgir no calor da luta popular, das diversas resistências que o povo cubano está realizando. Especialmente dos jovens e das mulheres. Nesse sentido, defendemos a unidade dos/as revolucionários/as de todo o mundo. Não acreditamos que apenas nossa corrente possa viabilizar essa nova direção. É necessária uma confluência de organizações e de lutadores/as revolucionários/as.

 

Em Cuba, viu-se que há setores da juventude que reivindicam o socialismo, que participam dos protestos a partir da perspectiva de uma esquerda crítica e independente do governo. Continuaremos a apoiá-los. Lutadores honestos, que foram às marchas com a consigna “socialismo não é repressão”.

 

Confiamos plenamente que no futuro esta luta continuará a ser desenvolvida em Cuba e que assim serão retomadas as bandeiras de Che Guevara e da revolução socialista de 1959. É isso que desejamos.

 

Notas:

 

[1] Página do grupo da esquerda crítica cubana “Comunistas”. Seu endereço é https://www.comunistascuba.org

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